Bebê que viveu há 3,3 milhões de anos
AUTOR: Christopher P. Sloan
FOTOS: Foto, à direita, de Zeresenay Alemseged, ©2006 Authority for Research and Conservation of Cultural Heritage (ARCCH) Foto, à esquerda, de Kenneth Garrett, ©2006 ARCCH O crânio do bebê Dikika, uma criança de 3,3 milhões de anos descoberta pelo paleoantropólogo etíope Zeresenay Alemseged. Trata-se da criança antiga mais completa já encontrada e possivelmente o melhor fóssil de sua espécie, Australopithecus afarensis, já encontrado. Zeresenay Alemseged tem dois filhos pequenos. Um deles é Alula, um menino que passa a maior parte do tempo no colo da mãe em uma casa térrea de Adis-Abeba, capital da Etiópia. O outro é uma menina de 3 anos que passou 3,3 milhões de anos incrustada em arenito, até que o cientista etíope e sua equipe retirassem seus ossos fossilizados do bloco rochoso. Foi um longo e lento renascimento para um bebê que viveu na aurora da humanidade.Essa recém-chegada não só é o mais completo bebê dessa época remota como também, pode-se argumentar, o mais bem preservado fóssil de um Australopithecus afarensis. Essa é a mesma espécie de outro fóssil célebre: Lucy, uma mulher adulta de 3,2 milhões de anos, cujos restos foram encontrados em 1974. Ao contrário de Lucy, porém, o bebê chegou até nós com dedos, um pé e o tronco completo. “Mas a diferença mais notável entre eles”, diz Zeresenay (entre os etíopes, a menção formal a uma pessoa é sempre feita pelo primeiro nome), “é que esse bebê tem rosto.”
O pequeno feixe de ossos pode ainda nos informar a respeito de um evento crucial na evolução dos hominídeos, como se denominam os predecessores dos seres humanos: os primórdios de nossa infância, a
etapa da vida em que desenvolvemos nosso cérebro avantajado. “O achado é relevante pela luz que pode lançar sobre a transição da infância para a maturidade dessa espécie”, diz Bill Kimbel, da equipe de pesquisa.É uma intrigante coincidência que o bebê mais antigo do mundo, morto enquanto ainda amamentava, tenha tido sua breve existência em uma região conhecida como Dikika – uma palavra que, na língua local, o afar, significa “mamilo” –, assim chamada por causa de uma colina cuja forma lembra a de um mamilo. Essa colina pode ser avistada no outro lado do rio Awash, desde Hadar, o sítio arqueológico no vale Rift onde foram exumados os fósseis de Lucy e de outros hominídeos. É uma região da Etiópia afligida por um calor extremo, inundações, malária e ocasionais trocas de tiros entre grupos étnicos rivais, para não falar dos leões, hienas e outros convidados noturnos indesejáveis. É um dos lugares mais desconfortáveis e perigosos do planeta para se buscar fósseis – mas também um dos locais onde estes são mais abundantes.
Durante décadas, a extremidade setentrional do Grande Vale Rift africano, a depressão de Afar, foi o domínio de expedições científicas estrangeiras. Zeresenay, de uma nova geração de paleoantropólogos etíopes, mudou isso ao liderar, em 1999, um grupo etíope de caçadores de fósseis que se aventurou pela árida depressão de Afar.
Até dezembro de 2000, o esforço deles resultara apenas em inúmeros fósseis de mamíferos, como elefantes e antílopes – mas nenhum de hominídeo. Mas Zeresenay, que trabalha no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na cidade alemã de Leipzig, sabia que sua equipe estava vasculhando o local certo. Afinal, muitos animais deviam ter prosperado nas matas ciliares que flanqueavam o ancestral do rio Awash. E os primitivos hominídeos também teriam preferido viver sob a sombra dessas florestas.
As matas pré-históricas de Dikika há muito deixaram de existir, e não se via sombra em 10 de dezembro de 2000, quando os pesquisadores se obrigaram a enfrentar mais uma vez o sol escaldante a fim de esquadrinhar o terreno. Tilahun Gebreselassie foi o primeiro a avistar o rosto do bebê Dikika no meio de uma encosta poeirenta. Ele era tão pequeno quanto o crânio de um macaco, mas a testa lisa e o dente canino reduzido logo revelaram que se tratava de um hominídeo pequeno. A equipe havia ganho na loteria dos fósseis: não só o crânio do bebê estava em perfeitas condições como, incrustados atrás da cabeça em um bloco duro de arenito, também havia ossos da parte superior do corpo. “Isso é algo que só acontece uma vez na vida”, diz Zeresenay.
Ele não tem idéia do que causou a morte do bebê Dikika, mas é provável que o rio tenha enterrado o corpo no meio do cascalho, protegendo-o de animais e das intempéries, antes de os ossos se amalgamarem com a rocha. Enquanto a maioria dos fósseis de hominídeos precisa ser reconstituída com base em centenas de fragmentos, Zeresenay deparou-se com drama oposto. Ele teve de retirar o arenito duro com uma broca de dentista para preservar todos os detalhes anatômicos das minúsculas vértebras e costelas.
Essa tarefa já lhe consumiu cinco anos, mas os resultados são preciosos: detalhes raramente vistos em um fóssil de australopiteco, entre eles um conjunto completo de dentes. Todas as minúsculas costelas do bebê estavam dispostas, como em vida, ao longo de uma sinuosa coluna vertebral. Um dos dedos estava dobrado como se agarrasse algo e, no local da garganta, Zeresenay achou um raro exemplo de osso hióide, um osso que posteriormente seria crucial para a fala humana.
Da cintura para baixo, o bebê Dikika era parecido com qualquer bebê humano. Um dos joelhos estava completo, com uma rótula não maior que uma ervilha. Mas a parte superior de seu corpo, tal como o de Lucy, tinha traços simiescos. Seu cérebro era pequeno; o nariz, achatado como o de um chimpanzé; e o rosto, comprido. Os ossos de seus dedos eram curvos e quase tão longos quanto os de um chimpanzé. As duas clavículas estavam intactas, as primeiras de que dispomos de um australopiteco, e assemelham-se às de um gorila jovem – dotadas de uma forma que facilita a escalada de árvores. O A. afarensis caminhava ereto, mas para alguns cientistas a espécie também passava um tempo na copa das árvores.
Seja como for, o bebê Dikika era uma criatura distinta dos símios dos quais seus ancestrais haviam se afastado vários milhões de anos antes. E suas diferenças ecoaram pela evolução humana posterior, afetando-a em todos os aspectos, dos laços familiares à origem da fala.
À medida que evoluíram de modo a suportar e mover um corpo ereto, os pés dos símios foram perdendo a capacidade de agarrar objetos com o dedo maior semelhante ao polegar. Enquanto os filhotes de chimpanzé se mantinham agarrados ao pêlo de suas mães com suas mãos fortes e seus dedos preensores, um bebê de hominídeo precisava ser carregado, restringindo a capacidade da mãe em buscar alimento. É possível que, por isso, tenha sido obrigada a depender de seu parceiro e do grupo mais amplo – o que teria levado a um fortalecimento dos laços sociais e poderia explicar por que os humanos são monógamos, ao contrário da
maioria dos primatas. Segundo Dean Falk, especialista em evolução do cérebro, o desamparo dos bebês de hominídeo poderia estar na origem da fala, a qual teria evoluído dos sons emitidos pela mãe para acalmar seus filhotes.O fóssil de Dikika também sugere que o desenvolvimento do cérebro já poderia ter começado a se prolongar mais, uma mudança que aumentou o tempo em que os filhotes permaneciam dependentes dos pais. Em função dos dentes do bebê, a equipe avaliou sua idade em 3 anos; seu cérebro, preservado como um molde de arenito no interior do crânio, tinha um volume de cerca de 330 centímetros cúbicos – o mesmo de um chimpanzé com 3 anos de vida. Isso poderia indicar que seu cérebro estava crescendo na mesma velocidade que o de um chimpanzé; Zeresenay acredita que ele levaria mais tempo para alcançar seu tamanho máximo, ligeiramente maior em um australopiteco do que nos chimpanzés.
Na maioria dos mamíferos, os filhotes começam a buscar alimentos para si mesmos assim que deixam de amamentar. Mas, durante a evolução humana, o crescimento cada vez maior do cérebro levou ao amplo período de dependência a que chamamos de infância. No bebê Dikika, Zeresenay vislumbra sinais de que estava começando essa etapa da vida característica dos humanos. “Capturamos não só um instante na vida de um indivíduo mas de toda uma espécie”, diz ele.
O desenvolvimento de cérebros maiores teve outras conseqüências. A matéria cinzenta é grande consumidora de energia em nosso corpo. Um quinto das calorias que ingerimos serve para manter o cérebro. No prazo de 1 milhão de anos após o bebê Dikika, nossos antepassados aprenderam a complementar a dieta vegetariana dos A. afarensis com carnes repletas de nutrientes e a criar ferramentas de pedra para separar a carne dos ossos e para quebrar os ossos e comer seu tutano farto em proteínas. Essa alimentação mais rica tornou possível o crescimento do cérebro. E isso resultou em novas invenções e depois em cérebros ainda mais avantajados. O resto é história.
A biografia do bebê Dikika não é extensa, mas as etapas evolutivas por ele representadas tiveram conseqüências profundas. Embora o bipedalismo e o cérebro maior implicassem um custo alto, sobretudo para as mães de nossa linhagem, essas características acabaram por associar-se de modo a produzir bebês inteligentes, que no fim seriam capazes de dominar técnicas, estabelecer civilizações e, claro, explorar suas próprias origens.