Bezerra de Menezes Abolicionista
Muito antes de tornar-se espírita, Bezerra de Menezes levantou a voz pela emancipação dos escravos
JOÃO MARCOS WEGUELIN
Os grandes vultos do Espiritismo sempre levantaram a sua voz a favor da emancipação dos escravos. Já em 1866 Antônio da Silva Neto publicou um opúsculo intitulado Estudos sobre a Emancipação dos Escravos no Brasil. Mais tarde, as páginas do Reformador também defenderam por este ideal, até que em 1888 fosse decretada a extinção da escravidão no Brasil.
Uma parte dessa história se encontra em deplorável estado de decomposição nas prateleiras da Biblioteca Nacional. Trata-se da obra A Escravidão noBrasil e as Medidas que Convém tomar para Extingui-la sem dano para a Nação, de Bezerra de Menezes, com 30 páginas, publicada pela Tipografia Progresso, em 1869. O único exemplar existente deste livro na Biblioteca Nacional tem a seguinte localização: BN – V-261, 2, 6, no 11.
Bezerra escreveu, na introdução do trabalho, que nenhuma questão reclamava mais a atenção do povo brasileiro do que a questão da emancipação da escravatura.
Para ele, a escravidão era “uma lamentável aberração do espírito humano”, condenada pela religião, pela civilização do século XIX, pela economia política e pela moral. Bezerra de Menezes condenou a maldita sede do ouro e a insaciável cobiça do homem que o leva a colocar os ganhos materiais à frente dos princípios morais.
Em seguida, Bezerra de Menezes demonstrou, através de fatos, que o trabalho feito por braço escravo não podia competir com o que era feito por braço livre.
Ele começou a contar a história da então Província do Ceará, onde, até 1845, todo o serviço doméstico e industrial era feito por braço escravo. Segundo afirmou: “Quem não possuía escravos, não podia ser lavrador!” Os fazendeiros, todos juntos, mal produziam para o consumo da Província, a exportação era nula e o comércio insignificante.
Com a chegada de uma seca devastadora no Ceará, em 1845, contudo, a única solução foi colocar à venda os escravos, o que deixou a Província despovoada dos mesmos. Então, ao longo de 24 anos, a fortuna pública e particular dos cearenses cresceu enormemente, prosperando a indústria de criação, bem como os fazendeiros, que antes mal davam conta da manutenção de suas fazendas, mas que agora haviam enriquecido. As fazendas passaram a valer sem os escravos o mesmo que valiam com todos eles.
Sem falar que muitos escravos morriam, o que acarretava grande prejuízo ao seu dono.
Um contingente enorme de pessoas correu para trabalhar nas fazendas, como explicou Bezerra de Menezes:
“Toda essa população, acoimada pelos viajantes de preguiçosa, e que de fato vivia na ociosidade, para não trabalhar em comum com os escravos, corre hoje para os pontos agrícolas em procura de trabalho.
Assegura-me pessoa competente e acima de toda a suspeição, que essa afluência de trabalhadores se faz em escala admirável, e que pela concorrência extraordinária que há, os salários são módicos, que feito o cálculo do que se gastava com um preto, não contando o empate do capital e o risco de perdê-lo, reconhece-se ser muito menor a despesa que se faz com um trabalhador livre.”
Bezerra de Menezes começou a expor, então, as muitas formas de emancipação da escravatura que eram defendidas naquela época. Havia os que defendiam a emancipação rápida e os que preferiam a emancipação gradual. Dentre os que clamavam pela emancipação rápida, uns a queriam de forma imediata, indenizando-se os proprietários; outros preferiam que se marcasse, desde aquele momento, um prazo, depois do qual todos os escravos ficariam livres, sem que a Nação indenizasse os seus proprietários.
Bezerra de Menezes defendeu a forma gradual de emancipação, optando ainda pela decretação do ventre livre.
Ventre livre, é, pois, o meio mais simples, mais fácil e mais cômodo entre todos de quantos se tem, até hoje, cogitado.
Ele remove todos os perigos e prejuízos que os outros acarretam, e resume em si todas as vantagens que se podem desejar, quando se trata de uma questão tão melindrosa, que joga com tantos interesses quer públicos quer particulares.
Porém esse meio não nos dá senão a solução de uma parte do problema; não nos dá senão a extinção da escravidão, e nós queremos o complemento dessa reforma, queremos a transformação do escravo em cidadão útil, sem o que todo o resultado é nulo, e porventura prejudicial.
Para que a emancipação pudesse servir de transformação para a vida do escravo, pudesse oferecer um futuro mais digno para todos aqueles que passassem a ser livres, Bezerra de Menezes defendeu que o Estado deveria ficar responsável pela criação e educação das crianças nascidas do ventre escravo.
Seu projeto, ao contrário dos demais projetos da época, visava não somente libertar o escravo, mas cuidar da sua educação moral, fazer com que ele completasse os estudos, conseguisse emprego e contraísse matrimônio.
Bezerra de Menezes explicou, a seguir, como seria esse plano:
A criação das crianças libertadas, não deve, pois, ser feita na casa dos senhores de suas mães, quer por interesse da vida dessas crianças, quer e principalmente por interesse de seu futuro e de sua educação moral.
Julgo que o melhor é estabelecerem-se casas de criação em todos os municípios, sob as vistas imediatas das respectivas Câmaras.
Essa corporação fará recolher à casa de criação, confiada à sua guarda e vigilância, todas as crianças que nascerem de ventre escravo em seus municípios, quer empregando, para esse fim, agentes seus, quer obrigando, por meio de posturas, os senhores a transportarem as crianças recém-nascidas.
Bezerra se preocupou inclusive com a amamentação dos bebês e, já naquela época, ele afirmou que a amamentação natural era a mais conveniente.
Na parte seguinte, Bezerra de Menezes escreveu sobre os seus planos para a educação das crianças:
Instrução primária acompanhada de princípios morais e religiosos, tão necessários como aos estudos; a prática desses princípios, fortificada pelos princípios de preceptores e diretores escrupulosamente escolhidos, eis no que se pode resumir a primeira educação a dar aos meninos de ambos os sexos, colocados sob a tutela da Nação.
Mais tarde, e logo que tenham aprendido as primeiras letras, devem os rapazes aplicarem-se ao estudo dos princípios elementares das ciências, que servem de base às artes mecânicas; e as raparigas à aprendizagem desses misteres que constituem o trabalho da mãe de família.
Chegados a este grau, as mulheres têm completado a sua educação; os homens, porém, precisam ainda aprender, cada um, um ofício para que tenham vocação.
Bezerra de Menezes entendia que a educação deveria ser de responsabilidade do Estado – iniciando entre os seis ou sete anos –, devendo ser levada adiante nas capitais das províncias, na Corte ou em qualquer lugar onde houvesse estabelecimentos competentemente montados para essa educação. Como homem à frente de seu tempo, Bezerra de Menezes ressaltou que o governo deveria dar muita atenção à instrução agrícola, avaliando que a agricultura seria a principal base da grandeza futura do Brasil. Além disso, ele sabia que somente educar esses jovens não resolvia o problema. O Estado não poderia lançar essas pessoas à sociedade e entregá-las a seus próprios recursos. Ele considerava que os homens saíam desses estabelecimentos públicos dotados da instrução necessária para ganharem a vida, mas entendia que o mesmo não acontecia com as mulheres.
A maior preocupação de Bezerra de Menezes, portanto, era com as mulheres, consideradas entes fracos e dependentes da vontade alheia. Muito discriminadas, elas tinham a obrigação de contrair matrimônio e de formar uma família. Era nessa proteção familiar que deveriam se tornar excelentes mães de famílias, educadas e formadas para a vida. Mas, por serem muito discriminadas, essa tarefa se tornava muito difícil e poderia colocar todo o plano a perder.
Para resolver problemas deste tipo, Bezerra de Menezes propunha a criação de colônias nacionais, para os libertos que fossem completando a sua educação moral e artística. Os filhos de escravos que estivessem preparados para a vida civil e social se reuniriam em um ou mais destes centros comuns, o que facilitaria ainda que moças encontrassem seus maridos, de acordo com as suas próprias condições, e constituíssem famílias honestas e laboriosas, ao invés de se perderem no seio da sociedade.
Bezerra de Menezes se defendeu ainda das críticas que seu projeto pudesse sofrer e afirmou que ao se isolar os libertos da comunhão dos brasileiros não se estaria fomentando indisposições ou rivalidades das raças. Mesmo porque esse entrelaçamento ocorreria pouco a pouco dentro da família geral brasileira. Ele resumiu o seu plano da seguinte forma:
Receber do escravo o fruto de seu amor depravado; criá-lo com todo o cuidado, como recomenda a caridade santa; educá-lo pelo trabalho, pela ilustração do espírito e pela prática dos sãos princípios da moral e da religião; constituir com ele uma família, em que se reproduzam aqueles princípios zelosamente incutidos em sua alma e em seu coração; e, por meio dessa família, levar a pureza dos costumes a todos os que se lhe aproximarem, a todos os que com ela se forem entrelaçando; é a meu ver a única solução que se deve dar à questão da emancipação do escravo no Brasil.
Ele considerou que o seu plano não era de difícil execução e que os brasileiros não se furtariam aos sacrifícios que fossem impostos a eles para levar a termo esta iniciativa. Achava que não haveria problema também para conseguir os recursos necessários para colocar o plano em prática. Afirmou que o Brasil era “um país onde o ouro se desperdiça a largas mãos”, acusou gastos exorbitantes com coisas inúteis e criticou a existência de um “funcionalismo estragado, sem préstimo e desnecessário”, Bezerra de Menezes defendeu um corte nos gastos no funcionalismo público, para que estas economias pudessem ser empregadas no seu plano. Pediu que fossem suspensos, ou ao menos reduzidos, os gastos com a colonização estrangeira, e colocou em primeiro plano a colonização nacional. Afirmou que o Estado poderia lançar mão de um imposto especial ou até mesmo contrair empréstimos, esclarecendo que essas despesas com a emancipação trariam vantagens reais ao país e contribuiriam para o aumento da renda pública.
Bezerra de Menezes defendeu ainda que o progresso material deveria caminhar junto com o progresso moral:
Não nos dediquemos exclusivamente ao progresso material, sacrificando-lhe toda a receita do Estado.
Atendamos também ao desenvolvimento moral, repartindo com ele uma parte daquela receita.
E como a emancipação dos escravos é atualmente a maior e mais elevada questão de caráter moral que temos a resolver, repartamos com ela uma parte da receita pública, que se costuma aplicar a verbas de melhoramentos materiais.
Ele acreditava que esses estabelecimentos agrícolas e industriais, essas oficinas e fábricas que o governo estabeleceria para escola dos educandos libertos, deveriam resultar em renda para o Estado se eles fossem convenientemente administrados. Se isso ocorresse, os gastos efetuados seriam cobertos e haveria até um saldo significante para os cofres públicos.Nos primeiros 8 a 10 anos não haveria qualquer compensação para o Estado, mas depois desse período os educandos passariam a produzir e estariam aptos a retribuir ao Estado as despesas efetuadas com a sua criação, com a sua educação e com o próprio estabelecimento.
No seu plano, Bezerra de Menezes estabelecia que os educandos não poderiam deixar os estabelecimentos antes de determinada idade, período em que eles teriam que trabalhar para o Estado, para cobrir as despesas que este mesmo Estado teve com eles.
Outra questão que foi pensada por Bezerra de Menezes foi a de como os educandos recomeçariam suas vidas quando eles saíssem desses estabelecimentos.
Afirmando que era possível conciliar o interesse público com o dos educandos, Bezerra de Menezes definiu que a partir do momento em que os educandos começassem a trabalhar, uma determinada parcela de seus rendimentos seria retirada e guardada, estabelecendo um sistema de cotas, em que todos teriam que contribuir. Com isso, aqueles que completassem a idade para deixarem os estabelecimentos dividiriam todo o valor acumulado. Bezerra de Menezes acreditava que essa idéia cobria as despesas feitas pelo Estado com os educandos, além de auxiliá-los no momento de deixarem os estabelecimentos.
No final da obra, Bezerra de Menezes afirmou que seu plano não era uma utopia ou um meio paradoxal de resolver a questão. Eis o que escreveu:
Dizem-me a consciência e a razão que a não ser ela resolvida por aquele modo, ou por outro semelhante, estulta será a glória de quem exterminar a escravidão no Império, porque em vez do bem que se espera, resultarão infinitos males de tão reclamada reforma.
Ao escrever essa obra, Bezerra de Menezes desejava estabelecer uma discussão em torno do assunto.
Queria que suas idéias pudessem ser avaliadas e aperfeiçoadas pelas grandes inteligências do país e que, com isso, ele pudesse contribuir indiretamente para o que ele considerava ser a mais importante reforma que o país necessitava.
A obra é datada de 10 de março de 1869 e o seu autor assinou apenas “Dr. Bezerra”.
O resgate deste livro é extremamente importante por dois aspectos. Em primeiro lugar, para mostrar a luta de Bezerra de Menezes pela emancipação dos escravos, uma luta que também foi de Antônio da Silva Neto e de outros grandes homens. Essa luta começou a ser ganha pouco mais de dois anos e meio depois da data desse livro, em 28 de setembro de 1871, com a promulgação da Lei do Ventre Livre. A outra questão pertinente é que a cópia deste livro, encontrada na Biblioteca Nacional, está em estado de decomposição, não se sabendo se existem outras cópias da obra deste grande brasileiro, que em vida se tornou mais conhecido como o “Médico dos Pobres”.
Fevereiro 2007 • Reformador 79