Cura d’Ars – Manifestações espirituais e participação na Codificação
ANTONIO CESAR PERRI DE CARVALHO
Jean-Marie Vianney, também conhecido como Jean-Marie Baptiste Vianney (1786-1859) – o cura d’Ars –, foi protagonista de algumas manifestações espirituais, e após sua desencarnação transmitiu mensagem que foi inserida em O Evangelho segundo o Espiritismo.
De início, é oportuno o esclarecimento de que a palavra cura, como era adotada na França, é utilizada para designação de sua função, ou seja, de vigário de aldeia ou povoação, não tendo nada a ver com sua atuação, coincidentemente, de intermediário de algumas curas. Ars, localizada a uns quarenta quilômetros ao Norte de Lyon, era, àquela época, uma pequena aldeia.
Vianney era oriundo de família simples e afeita ao meio rural.
Viveu conflitos em seu lar, pois o pai pretendia o mesmo futuro ao filho. Na juventude, passou por outro problema ao ser convocado para combater no exército de Napoleão. Adoeceu, foi internado duas vezes e aconselhado a desertar e a viver numa fazenda onde assume o papel de um filho primogênito. Ele se ocupa dos menores e lhes dá lições de leitura e de escrita. Na primavera e no verão, realiza a maior parte dos trabalhos da fazenda. É protegido e orientado por prelados católicos da região de Lyon, que não aceitavam o Imperador, em virtude de sua ruptura com o Vaticano. Encontra–se com Monsenhor Balley, que lhe diz: “Jean-Marie jamais será soldado, mas padre”. Depois de quatorze meses, ao retornar, ingressa em 1813 no Seminário Saint-Irénée, em Lyon. Como os cursos eram dados em latim e ele não compreendia nada, tirou nota “D”, que representa “deficiente no último grau”, e foi dispensado.
Monsenhor Balley retoma o trabalho com seu aluno e, pacientemente, o estimula a estudarem francês e não mais em latim. Foi readmitido em 1814 e ordenado subdiácono.
A dificuldade idiomática se repete em outro episódio, pois naquela época, em cada região ou até em aldeias, se falavam distintos dialetos.
Em seguida à sua ordenação, foi designado para as funções de cura na aldeia de Ars. Chegando de carroça, com poucos utensílios e cerca de trezentos livros, ocorreu o histórico encontro com um jovem pastor de ovelhas, Antoine Givre, com dez anos, que não sabia o francês e falava o dialeto de Ars, mas acabaram se compreendendo.
Vianney obteve a informação sobre o caminho e deu-lhe resposta que é registrada no monumento – o cura com um jovem –, existente à entrada de Ars: “Você me mostra o caminho de Ars, eu lhe mostrarei o caminho do céu”.1 Cinco anos depois de sua chegada em Ars, no começo de 1823, Jean-Marie Vianney funda uma escola com o nome “La Providence”, que também era um orfanato para crianças pobres e abandonadas por suas famílias, e para jovens em situação de miséria.
Adotava a regra de que os mais velhos ajudavam os menores.
Vianney sempre foi amparado pela família do visconde François des Garets d’Ars e seus primos, o conde e a condessa Prosper des Garets.
O cura d’Ars também foi epicentro de manifestações espirituais de efeitos físicos. Nos últimos meses de 1823, por volta das nove horas da noite, Jean-Marie Vianney escuta grandes golpes na porta da paróquia. Abre a janela do andar de cima e não vê pessoa alguma. Por volta das onze horas o barulho recomeça e, à uma hora da manhã, o cabo e o trinco da porta do pátio sacodem com violência.
Durante o tempo que dura o barulho, toda a casa estremece.
Certa feita,Vianney comentou com a condessa des Garets:
Essa noite, o “capeta” não me deixou fechar o olho. […] O demônio é bem mau, mas ele é muito tolo! – Ele está nervoso, é bom sinal. – Oh! Eu me habituo. Ele nada pode sem a permissão de Deus. – Eu sei que é o capeta” e isso me basta. Há tempos que nós nos relacionamos, nós somos quase camaradas. Eu era atormentado, durante o dia pelos homens e durante a noite pelo demônio, e sentia uma grande paz. […] O bom Deus é melhor que o demônio mau. É ele que me protege. O que Deus protege é bem guardado.1
Após 1825, os fenômenos tornaram-se raros, mas não desapareceram completamente.
Embora a biografia de Joulin1 não faça referência, no pequeno museu montado no local em que Vianney residiu, ao lado da igreja, está exposta a cama que ele utilizava, com as marcas de fogo, como registro de uma das manifestações de perseguição espiritual de que foi alvo. Allan Kardec2 analisa as manifestações do tipo de ruídos e pancadas e comenta que nem sempre se limitam a isso. “[…] Degeneram, por vezes, em verdadeiro estardalhaço e em perturbações. […]”, e “[…] assumem, não raro, o caráter de verdadeiras perseguições. […]”.
O Codificador cita, especificamente, exemplos de manifestações com pessoas que são acordadas com movimentações de objetos do quarto e da própria cama.
Destaca, ainda: “[…] Essas pessoas ignoram possuir faculdades mediúnicas, razão por que lhes chamamos médiuns naturais […]”.
Em nossos dias, é muita empregada a palavra de origem alemã poltergeist para as manifestações que envolvem Espírito barulhento, galhofeiro, desordeiro; e o pesquisador Hernani Guimarães Andrade3 considera que, entre estes fenômenos, “os mais temíveis são aqueles que provocam incêndios (parapirogenia)”. Este é o caso do incêndio da cama em que dormia o cura d’Ars.
Embora possam existir explicações variadas – e sem entrar no mérito da questão, mas é fato levado em
consideração no processo de canonização –, após a exumação de seu corpo constatou-se que este estava conservado. Para assinalar o fato e talvez até como estímulo a peregrinações, o corpo do sacerdote está exposto em um dos altares da igreja, sendo visível que apenas foi retocado com uma máscara facial de cera.
Vianney viveu e trabalhou durante 41 anos em Ars. Pela sua dedicação extremada conquistou a população e o espaço da religião, comprometida pelo período do “Terror” após a Revolução Francesa.
Em função de sua dedicação à comunidade, dos fenômenos espirituais e da conservação de seu corpo, estão caracterizadas algumas das condições que podem ter levado a Igreja Católica a canonizá-lo no ano de 1925. O biógrafo Joulin1 destaca que a visita do contemporâneo padre Lacordaire à paróquia de Ars atesta o renome de Vianney.
Joulin1 destaca que as inspirações do cura d’Ars não eram jansenistas, não falava de salvação em Deus a uma pequena elite de predestinados, onde todos os outros homens estariam irremediavelmente condenados ao inferno.
Ele se referia sem cessar ao amor de Deus, do bom Deus, como dizia, e na sua boca o adjetivo “bom”não era uma maneira de falar, mas exprimia o essencial:
O bom Deus nos criou e nos pôs no mundo porque nos ama;
Ele quer nos salvar porque nos ama – o bom Deus quer a nossa felicidade – Ó meus filhos, que Deus bom!
A repercussão de seu trabalho na pequenina Ars estimulou a visita de milhares de peregrinos enquanto estava encarnado e após sua desencarnação, construindo a imagem de homem extremamente bom, dedicado ao povo e curador.
Com base nessa lembrança é que seu Espírito foi evocado e houve a manifestação inserida em O Evangelho segundo o Espiritismo.
Na mensagem “Bem-aventurados os que têm fechados os olhos”, que assina como Espírito (Vianney, cura d’Ars, Paris, 1863) no original em francês da obra citada (texto da 3a edição)4 – o que nem sempre aparece nas traduções –, ele emprega quatro vezes a sua usual expressão “bom Deus”, tal como fazia, habitualmente, em seus escritos e preleções em Ars, ao se referir ao Criador. Este fato, até agora não destacado, é importante como um dos itens para identificação de Espíritos comunicantes, sendo, portanto, oportuno, para finalizarmos, transcrever o seguinte trecho dessa obra:
Ah! Que sofrimento, bom Deus!
Ela perdeu a vista e as trevas a envolveram. Pobre filha! Que ore e espere; eu não sei fazer milagres, sem a vontade do bom Deus. Todas as curas que tenho podido obter e que vos foram assinaladas, não as atribuais senão àquele que é Pai de todos nós.
Referências:
1JOULIN, Marc. La petite vie de Jean-Marie Vianney: curé d’Ars. Paris: Desclée de Brouwer, 2004. p. 153.
2KARDEC, Allan. O livro dos médiuns.79. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Parte segunda, cap. V, itens 87, 89 e 92.
3ANDRADE, Hernani G. Poltergeist. Algumas de suas ocorrências no Brasil. São Paulo: Ed. Pensamento, 1988. Cap.I.
4KARDEC, Allan. L’évangile selon lê spiritisme. Rio de Janeiro: FEB, 1979. Chapitre VIII, p. 121-122.
Reformador novembro 2007