São Paulo, precursor do espiritismo
“Quantos dias se passaram, meus filhos, desde que tive a felicidade de entreter-me convosco! Assim é com muito suave satisfação que me encontro na minha cara Sociedade de Paris.”
“Com que vos entreterei hoje? A maior parte das questões morais foram tratadas por penas hábeis; não obstante elas são de tal modo de meu domínio e o seu campo é tão vasto, que ainda encontraríeis alguns grãos de verdade, para semear. Além disso, ainda mesmo que apenas repetisse o que outros já disseram, talvez apareçam alguns novos ensinamentos, porque as boas palavras, como as boas sementes, sempre produzem bons frutos.”
“Para nós os livros santos são celeiros inesgotáveis, e o grande apóstolo Paulo, que outrora tanto contribuiu para o estabelecimento do Cristianismo por sua prédica poderosa, vos deixou monumentos escritos, que servirão, não menos energicamente, à expansão do Espiritismo. Não ignoro que os vossos adversários religiosos invocam seu testemunho contra vós; mas isto não impede que o ilustre iluminado de Damasco seja por vós e esteja convosco; ficai bem convencidos. O sopro que passa nas suas epístolas, a santa inspiração que anima os seus ensinos, longe de ser hostil à vossa doutrina, ao contrário está cheio de singulares previsões em vista do que acontece hoje. É assim que, na sua primeira epístola aos Coríntios, ele ensina que, sem a Caridade, não existe nenhum homem, ainda que fosse santo, profeta e transportasse montanhas, que se possa gabar de ser um verdadeiro discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como os Espíritas, e antes dos Espíritas, foi ele o primeiro a proclamar esta máxima que vos constitui uma glória: Fora da Caridade não há salvação! Mas não é apenas por este lado que ele se liga à doutrina que nós vos ensinamos e que hoje propagais. Com aquela alta inteligência que lhe era própria, tinha previsto o que Deus reservava para o futuro e, notadamente, esta transformação, esta regeneração da fé cristã, que sois chamados a assentar profundamente no espírito moderno, pois que descreve, na citada epístola, e de maneira indiscutível, as principais faculdades mediúnicas, que chama os dons abençoados do Espírito Santo.”
“Ah! Meus filhos! Aquele santo doutor contempla com uma indissimulável amargura, o grau de aviltamento em que caíram, pela maior parte, aqueles que falam em seu nome e proclamam, urbi et orbi, que outrora Deus deu à terra toda a soma de verdades que esta era capaz de receber. E, contudo, o apóstolo tinha exclamado em seu tempo que só havia uma ciência e profecias imperfeitas. Ora, aquele que se lastimava de tal situação sabia, por isto mesmo, que essa ciência e essas profecias um dia se aperfeiçoariam. Não está aí a condenação absoluta de todos os que condenam o progresso? Não é isto o mais rude golpe para os que pretendem que o Cristo e os Apóstolos, os Pais da Igreja e, sobretudo os reverendos casuístas da Companhia de Jesus, deram à terra toda a ciência religiosa e filosófica a qual ela tinha direito? Felizmente o próprio apóstolo teve o cuidado de os desmentir antecipadamente”.
“Meus caros filhos, para apreciar, no seu justo valor, os homens que vos combatem, não tendes senão que estudar os argumentos de sua polêmica, suas palavras acerbas e os pesares que testemunham, como o Rev. Pe. Pailloux , que as fogueiras tenham sido extintas e que a Santa Inquisição não mais funcione ad majorem Dei gloriam. Meus irmãos, tendes a Caridade, eles a intolerância. Assim são eles muitos para lamentar. Eis porque vos convido a orar por esses pobres transviados, a fim de que o Espírito Santo, que eles tanto invocam, se digne, enfim, lhes iluminar a consciência e o coração”.
“Mas dirá algum: Como ressuscitarão os mortos? Ou em que qualidade de corpo virão? Como és insipiente! O que tu semeias não se vivifica, se primeiro não morre. E quando tu semeias, não semeais o corpo da planta que há de nascer, senão o mero grão, como, por exemplo, de trigo ou de algum dos outros. Porém Deus lhe dá o corpo como lhe apraz , e a cada uma das sementes o seu próprio corpo.
“Nem toda a carne é uma mesma carne; mas uma certamente é a dos homens, e outra a dos animais; uma a das aves, e outra a dos peixes.”.
“E corpos há celestiais, e corpos terrestres; mas uma é por certo a glória dos celestiais, e outra a dos terrestres. Uma é a claridade do sol, outra a claridade da lua, e outra a claridade das estrelas; e ainda há diferença de estrela a estrela na claridade”.
“Assim também a ressurreição dos mortos. Semeia-se o corpo em corrupção; ressuscitará incorrupção. Semeia-se em vileza, ressuscitará em glória; semeia-se em fraqueza, ressuscitará em vigor. É semeado o corpo animal, ressuscitará o corpo espiritual. Se há corpo animal, também o há espiritual, assim como está escrito.”
“Mas digo isto, irmãos, que a carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus, nem a corrupção possuirá a incorruptibilidade. (I. Cor. XV: 34-44 e 50) (*).
Que pode ser este corpo espiritual, que não é o corpo animal, senão o corpo fluídico, cuja existência é demonstrada pelo Espiritismo, o perispírito, de que a alma é revestida após a morte? Com a morte do corpo, o Espírito entra em confusão; por um instante e perde a consciência de si mesmo; depois recupera o uso de suas faculdades, renasce para a vida inteligente; numa palavra, ressuscitará com o seu corpo espiritual.
O último parágrafo, relativo ao juízo final, contradiz positivamente a doutrina da ressurreição da carne, pois diz: a carne e o sangue não podem possuir o reino de Deus. Assim, os mortos não ressuscitarão com sua carne e seu sangue, e não necessitarão reunir seus ossos dispersos, mas terão seu corpo celeste, que não é o corpo animal. Se o autor do Catéchisme philosophique (Catecismo Filosófico do Pe. Feller, v.III pág. 83) tivesse meditado bem o sentido destas palavras, teria evitado fazer notável cálculo matemático, a que se entregou, para provar que todos os homens mortos desde Adão, ressuscitando em carne e osso, com seus próprios corpos, poderiam caber perfeitamente no Vale de Josafá, sem muito incomodo.
Assim, São Paulo estabeleceu em princípio e em teoria o que hoje ensina o Espiritismo sobre o estado do homem após a morte.
Mas São Paulo não foi o único a pressentir as verdades ensinadas pelo Espiritismo. A Bíblia, os Evangelhos, os Apóstolos e os Pais da Igreja dele estão cheios, de sorte que condenar o Espiritismo é negar as autoridades mesmas sobre as quais se apóia a religião. Atribuir todos os seus ensinamentos ao demônio é lançar o mesmo anátema sobre a maioria dos autores sacros.
Assim, o Espiritismo não vem destruir, mas, ao contrário, restabelecer todas as coisas, isto é, restituir a cada coisa o seu verdadeiro sentido.
(*) Desde que há uma tradução clássica em português, a de Figueiredo; e considerado leves divergências com as de outras línguas, foi sempre critério nosso usar, nas citações bíblicas, a tradução da célebre Bíblia da Bahia. Ed. De 1881. Nota do Tradutor (Julio Abreu Filho).
http://www.ajornada.hpg.com.br/kardec/kardec0017.htm