Ecos da Floresta (cura com plantas)
Os hábitos intrigantes dos pajés, com seus rituais de cura. Quando um índio adoecia, quando as feridas da guerra faziam periclitar a vida, quando o caiporismo da sorte punha a caça mais arisca, então era o “feiticeiro” que entrava em cena, buscando no escuro da floresta, já que lhe agradava mais a cabana longe da aldeia, onde pudesse conservar em paz o segredo de suas plantas e de suas rezas. E para espanto do homem branco, os pajés, quando em atividade curadora, muitas vezes retiravam do corpo do enfermo objetos estranhos, como lascas de ossos ou pedaços de carvão. Com freqüência os pajés colavam a boca no corpo do doente, sugavam-no, e depois cuspiam fora o ‘feitiço” materializado na forma daqueles objetos. Todo o Brasil conhece e admira o Professor Ruschi, um cientista que dedicou sua vida ao estudo e à defesa da fauna e da flora de nossa terra. Ora, um homem que se enternece com os reflexos irisados das asas de um colibri, há de ter beija-flores na alma. Pois bem. Toda a imprensa noticiou que o Professor Ruschi estava muito enfermo. Já com mais de 70 anos de idade, vinha sentindo tonturas, mal-estar, inapetência e apresentando freqüentes hemorragias nasais que nem ao menos permitiam-lhe dormir. Todos os recursos da medicina foram tentados, mas os médicos nada garantiam. Só 5% do fígado do cientista funcionavam. O desenlace parecia próximo e não houve quem, conhecendo-o, não se comovesse. Aquela alma, que tanto amou os pássaros, notadamente os beija-flores, parecia querer seguir-lhes o vôo. Foi então que, num momento de feliz inspiração, o nosso Presidente da República expediu uma ordem aparentemente disparatada: mandou convocar o cacique txucahamãe Raoni e o pajé camaiurá Sapaim, pedindo-lhes que salvassem o cientista. É que, ao que consta, em 1974 o Professor Ruschi, aproveitando-se de uma de suas incursões pela floresta amazônica, andou colhendo alguns sapos, os (agora) famosos dendrobatas ou dendróbatas, a pedido de um outro cientista, seu amigo. O dendróbata é um sapinho multicolorido, bonito mesmo, mas altamente venenoso. Tão venenoso que os índios aproveitam sua peçonha para envernizar as pontas das flechas. O professor teria, pois, sido contaminado e isso o estaria, agora, matando. Há quem conteste semelhante hipótese: o veneno do dendróbata deveria ter morto o professor em muito menos tempo, e não ficaria retido no organismo para matá-lo aos poucos. Mas não importa: o professor estava doente e, segundo os jornais noticiaram, praticamente desenganado pelos médicos. O cacique Raoni, sem saber da história, diz ter sonhado com o professor, que se debatia numa lagoa cheia daqueles batráquios. Ao índio isto bastou para o diagnóstico: o professor fora envenenado pelos sapos. Mais tarde, ao avistar o cientista, Raoni encontrou até um apoio anatômico para confirmar suas suspeitas: – o véio já tá com cara de sapo – disse ele. Para encurtar a história, a pajelança foi feita: com o uso de uma planta chamada atorokom, de outra denominada tokuperam, com baforadas de petam, com cânticos e rezas em língua nativa, os dois pajés gastaram três dias tentando salvar o cientista. Mas não apenas cantos, fumo e banhos herbáceos foram aplicados. O jornal O Estado de São Paulo, em sua edição de 24/01/86, mostra na primeira página uma foto de Raoni claramente aplicando no professor aquilo que chamaríamos de passe. E agora vejam: o repórter Rogério Medeiros, o próprio Ruschi e sua esposa testemunharam que, enquanto os índios faziam seu ritual, do corpo desnudo do cientista foi sendo exsudada uma substância escura, gosmenta e mal cheirosa que, atingindo o tamanho de uma bola de gude, era colhida pelos pajés e depois desaparecia ante o sopro da fumaça do petam. – “Foi impressionante”- disse aquele jornalista. Segundo os aborígenes, aquela substância era o veneno dos sapos. Ora, muito bem. O ritual, dissemos, durou três dias. Mas após o primeiro, tão logo ele terminou, já o professor estava sem tonturas, sem sangramento nasal, sem mal-estar e com uma tremenda fome. Quando os índios deram seu trabalho por findo (a substância eliminada pelos poros do professor foi se tornando mais escura e mais mal cheirosa a cada dia), Ruschi de nada mais se queixava. Voltou para casa e está de novo a escrever seus livros e a observar seus pássaros. É claro que, tendo mais de setenta anos e havendo já contraído muitas doenças, como a malária, em suas longas permanências nas florestas do Brasil, um dia terá que nos deixar. Mesmo assim, quando sua alma tiver que partir, há de ser conduzida pelos beija-flores e não arrastadas pelos sapos, aos corcovos. O que importa é que agora ele está bom. Com muito apetite, com a mesma disposição para o trabalho e dormindo bem, cessadas que foram as contínuas hemorragias nasais. Mas como em toda história bonita sempre há, ali pelo meio, um trecho que a entristece, esta o tem, igualmente. É que muitos médicos criticaram o nosso presidente, dizendo que ao chamar os pajés ele desrespeitaria a medicina oficial, instituindo o curandeirismo. E mais: disse o Dr. Carlos Bacelar, neurologista, segundo noticia O Estado de São Paulo de 25/01/86, que se os pajés conseguissem curar Ruschi, ele, Carlos Bacelar, colocaria um prato em seu lábio inferior (alusão irônica, desrespeitosa e impertinente ao botoque usado por Raoni, um distintivo dos txucahamãe). Mas não houve desprestígio nenhum à medicina. Apenas uma tentativa a mais de salvar uma vida, e por que não? Pois os médicos já não haviam desenganado o professor? Já não se tentara de tudo? Então será melhor deixar alguém morrer “oficialmente” a tentar salvá-lo valendo-se de alternativas? Que sabem os médicos sobre as propriedades curativas do atorokom e do tokuperam, que ninguém sabe ao menos que plantas sejam, para intempestivamente invalidar-lhes a eficácia? Claro que nós, os espíritas, não adotamos o uso de cânticos, de fumaças e de coisas assim, mas se os silvícolas, distanciados que ainda estão dos ensinos do Evangelho e desconhecedores das conquistas das chamadas “ciências psíquicas”, o Espiritismo à frente, valem-se desses recursos para a mobilização de suas propriedades curativas, sua bioenergia, seu magnetismo ou seja lá o que for, que direito temos nós, os “civilizados”, de sorrir superiormente desprezando-lhes a cultura milenar? Um fato é inconteste: os índios fizeram pelo professor o que os médicos não lograram fazer. E não vai aqui nenhum desrespeito ou desapreço à medicina. Estaríamos no fim da fila quando se tratasse de menosprezá-la. Mas, disse alguém, não há nada mais brutal do que um fato. E é incrível que depois de mais de um século de pesquisas psíquicas, depois da máquina Kirlian, ainda existam alguns médicos, alguns cientistas, que continuam achando que a sua ciência já deu a última palavra sobre tudo. Continuam achando que são donos da verdade e da saúde alheia, senhores da vida e da morte. E não é nada disso! Ao Dr. Carlos Bacelar não vamos cobrar o prato que ficou de pendurar no seu lábio inferior se o cientista se curasse. Mas, com todo o respeito vamos cobrar-lhe, isto sim, que de outra feita tenha um pouco mais de humildade e recorde as famosas palavras de um outro índio, aquele chefe seatle, que assim falou ao presidente dos Estados Unidos, no século passado: – Há uma coisa que sabemos e que o homem branco descobrirá, talvez, um dia: é que nosso Deus é o mesmo Deus. É o Deus do homem, e sua piedade é igual para o homem vermelho e para o homem branco. geocities.com/nelson_fragoso/ecos.html fevereiro/1986