Fundamentos da razão humana
MARTA ANTUNES MOURA
A palavra razão (do latim ratio) é interpretada como faculdade humana que possui a capacidade de raciocinar, apreender, compreender, ponderar e julgar. Sinônima de inteligência, a razão é apontada pela Filosofia como orientadora da conduta humana através da qual, pelo raciocínio, pode o homem manifestar a essência da sua inteligência, sempre que se apóie nos instrumentos lógicos da prova e da argumentação.
A racionalidade filosófica defende o controle exclusivo da razão no entendimento da verdade, justificando que somente a inteligência consegue identificar as qualidades primárias ou essenciais dos objetos. Faz oposição à imaginação por considerá-la limitada, apta a captar apenas as qualidades secundárias dos objetos, com auxílio dos órgãos sensoriais. No século dezoito, os filósofos racionalistas defendiam a tese de que a imaginação distorcia a realidade, a própria essência das coisas, por representar os objetos de maneira obscura e confusa, enquanto a razão o fazia de maneira clara e distinta.
René Descartes procurou construir uma ponte entre as idéias reinantes, apesar de suas interpretações mostrarem forte apelo racional. Segundo ele, no conhecimento há apenas que considerar dois pontos,
a saber: o que nós conhecemos e o objeto a ser conhecido.
Em nós, há somente quatro faculdades que nos podem servir para esse uso: são a inteligência, a imaginação, os sentidos e a memória.1
A situação é diferente, hoje, porque a imaginação é considerada base da criatividade que, por sua vez, pode demonstrar a verdade ou a realidade de forma até mais completa que a razão. É preferível concluir que não há faculdade mais importante que outra.
Todas são úteis e servem aos propósitos do desenvolvimento intelectual e moral do Espírito.
A doutrina filosófica, que define a razão como guia seguro e orientador da conduta humana, em todos os campos do saber, tem como fundamentos a indagação e a investigação, referenciais da metodologia científica.
O primeiro fundamento estimula o raciocínio, o segundo trabalha as evidências. Trata-se, a rigor,de doutrina de natureza estóica – escola helênica de idéias ecléticas predominantes nos cinco primeiros séculos d.C. – que considerava a razão como força que liberta o homem dos preconceitos, dos mitos e das falsas opiniões enraizadas.
Ensinava, igualmente, que somente a razão pode controlar as paixões animalizadas presentes na natureza humana. (DIÓGENES, L.: Vitae et placita philosophorum.VII.) Platão e Aristóteles enfatizavam a importância de fazer distinção entre razão e sensibilidade, fonte básica do conhecimento comum.
(PLATÃO: Fedro. 83a; ARISTÓTELES: Metaphysica. I, 1, 980b-26.) Lembrando Sócrates, Platão acres
acrescenta que é preciso buscar a Ética da Razão, ou seja, não se deixar iludir pelas aparências ou simulacros do conhecimento.
Para Santo Agostinho, razão é força criadora do mundo humano: inventou a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências; é o que de imortal existe no ser humano. (De ordine. II, 19, 50.) O pensamento aristotélico ensina que somente a essência da razão possui atributos para perceber a verdade ou a realidade, por ser algo inerente no ser humano e que pode ser desenvolvido pela educação.
Tal conceito passou a ser denominado autoconsciência ou consciência racional, a partir do século dezenove.
Os filósofos que defenderam (e defendem) essa ordem de idéias estavam convictos de que a inteligência tem a exclusiva capacidade para discernir entre o certo e o errado.2
A idéia da autoconsciência, todavia, nos reporta a Sócrates, que entende ser a razão o logos, isto é, o diálogo permanente que conduz ao conhecimento de si mesmo e à essência das coisas. Em resposta à questão 919a de O Livro dos Espíritos, Santo Agostinho ensina como desenvolver a autoconsciência: Fazei o que eu fazia, quando vivi na Terra: ao fim do dia, interrogava a minha consciência, passava em revista ao que fizera e perguntava a mim mesmo se não faltara a algum dever, se ninguém tivera motivo para de mim se queixar.
Examinai o que pudestes ter obrado contra Deus, depois contra o vosso próximo e, finalmente, contra vós mesmos. As respostas vos darão, ou o descanso para a vossa consciência, ou a indicação de um mal que precise ser curado.
O conhecimento de si mesmo é, portanto, a chave do progresso individual. […] Quando estiverdes indecisos sobre o valor de uma de vossas ações, inquiri como qualificaríeis se praticada por outra pessoa. Se a censurais noutrem, não na podereis ter por legítima quando fordes o seu autor […].3
Razão, segundo o Espiritismo, é conquista da mente humana, “[…] o campo de nossa consciência desperta, na faixa evolutiva em que o conhecimento adquirido nos permite operar”.4 Por ser concessão divina, a razão regula a evolução do Espírito que, em sua passagem pelos reinos inferiores
da Natureza, “[…] viajou do simples impulso para a irritabilidade, da irritabilidade para a sensação, da sensação para o instinto, do instinto para a razão […]”.5 Nesse processo, “[…] o cérebro é o aparelho da razão […]”,6 onde a mente se manifesta.5 Os Espíritos orientadores esclarecem que a razão não é guia infalível, porque, sendo imperfeito o Espírito, também é imperfeita a sua inteligência (razão): “Seria infalível, se não fosse falseada pela má-educação, pelo orgulho e pelo egoísmo. […] a razão permite a escolha e dá ao homem o livre-arbítrio”.7 Assim, o aperfeiçoamento da razão decorre do progresso do Espírito que, tornando-se melhor, aprende a guiar-se pelo bom senso, que é o uso criterioso ou ponderado da razão. Em síntese, “[…] a razão e a vontade, o conhecimento e o discernimento entram em função nas forças do destino, conferindo ao Espírito as responsabilidades naturais que deve possuir sobre si mesmo […]”.8 Por último, importa considerar que a razão é continuamente influenciada por outros valores presentes na mente espiritual.
Não atua nem desenvolve isoladamente.
A influência recíproca vibra em todos os instantes da vida e em todos os pontos do Universo, de forma que o uso do livre-arbítrio de alguém repercute na existência de outras pessoas.
Tudo se desloca e renova sob os princípios de interdependência e repercussão. O reflexo esboça a emotividade. A emotividade plasma a idéia. A idéia determina a atitude e a palavra que comandam as ações.4 É natural, pois, que a razão seja diretamente contrabalanceada pelo sentimento, a fim de que ocorra a evolução integral do Espírito. […] A razão sem o sentimento é fria e implacável como os números, e os números podem ser fatores de observação e catalogação da atividade, mas nunca criaram a vida. A razão é uma base indispensável, mas só o sentimento cria e edifica. É por esse motivo que as conquistas do humanismo jamais poderão desaparecer nos processos evolutivos da Humanidade. 9
Referências:
1DESCARTES, R. Regras para a orientação do espírito. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes. Regra XII, p. 73.
2ABBRAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 827-828.
3KARDEC, Allan. O livro dos espíritos . Tradução de Guillon Ribeiro. 89. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Questão 919a.
4XAVIER, Francisco C . Pensamento e vida. Pelo Espírito Emmanuel. 17. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. Cap. 1, p. 12.
5______. No mundo maior. Pelo Espírito André Luiz. 26. ed. Rio de Janeiro: FEB,2006. Cap. 4, p. 68.
6______. Os mensageiros. Pelo Espírito André Luiz. 43. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006. “Os mensageiros”, p. 7.
7KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. 89. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Questão 75a.
8XAVIER, Francisco C. Ação e reação. Pelo Espírito André Luiz. 26. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004. Cap. 7, p. 112.
9______. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 25. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004. Questão 198.
REVISTA REFORMADOR SETEMBRO 2007