Saude e Doença
A Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), redigida em 1946, declara que “[…] saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença […].”1
Trata-se de uma definição que foi sabiamente inspirada pelos benfeitores espirituais, mesmo tendo sido redigida nos conturbados momentos do pós-guerra.
Surpreendentemente, surgiram veementes críticas, erguidas por opositores que julgaram a Declaração como de natureza utópica, fora da realidade, uma vez que não conseguiram imaginar a saúde como um estado completo de bem-estar. Acreditavam que a Orientação produziria conflitos entre a teoria e a prática médica e que seria totalmente inaplicável nos serviços de saúde pública, ou coletiva, cujas ações, centradas na ótica do Estado, entrariam em choque com os interesses representados nas distintas formas de organização social e política das populações. Contrafeitos, admitiram que a definição idealística de saúde da Constituição da OMS fornecia, contudo, certa liberdade para ampliar as ações de saúde em todos os níveis da organização social.
Para a Doutrina Espírita, que considera o ser humano de forma integral, dentro do contexto físico-espiritual, saúde é o estado de plenitude espiritual, ou seja, de completo bem-estar. Analisa que a doença é conseqüência das más ações cometidas pelo Espírito, na existência atual ou em vidas anteriores.
Esclarece, sobretudo, que a criatura humana espiritualizada aprende, por sua vez, a amar, e como o “amor cobre uma multidão de pecados”, no dizer do apóstolo Pedro (I Pedro, 4:8), ela adquire inesgotável reserva de vitalidade.
Neste sentido, ensina o venerável orientador Alexandre ao Espírito André Luiz: “[…] Somente o amor proporciona vida, alegria e equilíbrio […]”.2
Por meio do processo evolutivo o Espírito libera-se, paulatinamente, das expiações e provações severas, conquistando um estado de saúde mais permanente. Ao libertar- se do mal que ainda trazia dentro de si, encontra o Espírito a fórmula para não mais adoecer.
É evidente que tudo isso demanda tempo, daí asseverarem os Orientadores da Codificação Espírita que “uma só existência corporal é manifestamente insuficiente para o Espírito adquirir todo o bem que lhe falta e eliminar o mal que lhe sobra”.3
Esclarecem também que “para cada nova existência de permeio à matéria, entra o Espírito com o cabedal adquirido nas anteriores, em aptidões, conhecimentos intuitivos, inteligência e moralidade. Cada existência é assim um passo avante no caminho do progresso”.4
Nos dias atuais, a maioria dos profissionais de saúde, em especial os da saúde coletiva, prefere seguir um conceito mais funcional de saúde, o que foi aprovado pelo Escritório Regional Europeu da OMS, cujas idéias gerais estabelecem o seguinte: saúde é a condição que permite a um indivíduo realizar aspirações e satisfazer necessidades e, simultaneamente, lidar com o meio ambiente. A saúde representa, assim, um recurso para a vida diária, não o objetivo dela; abrange os recursos sociais e pessoais, bem como capacidades físicas.
A dificuldade que o conceito gera, de imediato, segundo opinião do respeitável pensador alemão Hans-Georg Gadamer (1900-2002), autor do livro Verdade e Método: Esboços de uma Hermenêutica Filosófica– estudado durante décadas nos mais proeminentes centros intelectuais e acadêmicos, sobretudo da Alemanha – é que como a doença desperta atenção, a ciência médica corre o risco de transformar-se na ciência da doença, porque, acrescenta, “[…] é o estado de doença que, aparecendo, produz um sentimento de perigo e estimula uma resposta terapêutica.
A prática médica, nesse sentido, tentando modificar o percurso da natureza, dominando suas manifestações patológicas, ao mesmo tempo deixa de lado um interesse sobre a concepção de saúde e, em parte, a prevenção das doenças”.5
Outro obstáculo é permitir que o conceito funcional de saúde caminhe sozinho, indiferente à visão sistêmica do binômio saúde-doença.Nessa situação, não é possível desconsiderar o impacto que a doença provoca no indivíduo, a partir do momento em que este assume a sua condição de enfermo, analisa o professor Paulo César Alves, da Universidade Federal da Bahia, em seu artigo “Revisão Crítica dos Aspectos Sócio-antropológicos da Doença”:
O indivíduo passa a não ser mais considerado como totalmente responsável pelo seu estado, ficando legitimamente isento das suas obrigações sociais normais, desde que procure ajuda competente (dentro dos parâmetros oferecidos pela sua sociedade) e coopere com o tratamento indicado.6
Em outras palavras, a pessoa não reage, entrega-se à manifestação do processo, tornando-se dependente da ação médica, a qual, se bem direcionada, gera satisfação, caso contrário, resulta em tristeza e amargura. Trata-se de uma situação complexa, especialmente quando a doença faz parte do quadro provacional do indivíduo, determinada antes da reencarnação.
Fazendo breve reflexão sobre ambos os conceitos de saúde, o existente na Constituição da OMS e o do Escritório Regional Europeu, percebemos que o primeiro fornece uma visão de futuro, é meta a ser alcançada a longo prazo, e se destina à Humanidade regenerada; o segundo enfoca a doença e tem aplicação imediata. As duas definições se completam, na verdade, mas revelam dimensões espaço-
temporais distintas: em uma, a pessoa é induzida a refletir a respeito da necessidade de investir na prevenção de doenças, procurando manter a saúde em todos os níveis relacionados ao seu bem-estar: físico, psíquico, emocional e espiritual.
Em outra, o doente é o foco principal, o ser que precisa de tratamento.
A proposta da Constituição da OMS é educar, a do Escritório Regional Europeu é corrigir.
Quando a Medicina admitir que o indivíduo é um ser imortal, preexistente à reencarnação e sobrevivente ao túmulo, as práticas médicas serão substancialmente modificadas.
Deverá prevalecer, então, a convicção de que a doença não é, em essência, uma ocorrência biológica, mas o reflexo de uma alma enferma que deve ser amparada, fortificada e tratada. Nessas circunstâncias, recordamos Druso, admirável Instrutor espiritual, citado no livro Ação e Reação:
[…] É indispensável compreendamos que todo mal por nós praticado conscientemente expressa, de algum modo, lesão em nossa consciência e toda lesão dessa espécie determina distúrbio ou mutilação no organismo que nos exterioriza o modo de ser. Em todos os planos do Universo, somos Espírito e manifestação, pensamento e forma. Eis o motivo por que, no mundo, a Medicina há de considerar o doente como um todo psicossomático, se quiser realmente investir-se da arte de curar.
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– Da mente clareada pela razão, sede dos princípios superiores que governam a individualidade, partem as forças que asseguram o equilíbrio orgânico, por intermédio de raios ainda inabordáveis à perquirição humana, raios esses que vitalizam os centros perispiríticos, em cujos meandros se localizam as glândulas chamadas endócrinas, que, a seu turno, despedem recursos que nos garantem a estabilidade celular.[…]7
Referências:
1_____ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Constituição da Organização Mundial da Saúde. Preâmbulo. Nova Iorque, 22 de julho de 1946, p. 1.
2_____XAVIER, Francisco Cândido. Missionários da luz. Pelo Espírito André Luiz. 43. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Cap. 13, p. 249.
3_____KARDEC, Allan. O céu e o inferno. Tradução de Manuel Justiniano Quintão. 60. ed. Rio de Janeiro:
FEB, 2007. Primeira parte, cap. 3, item 9, p. 34.
4______Idem, ibidem. p. 35.
5_____CAPRARA, Andréa. Uma abordagem hermenêutica da relação saúde-doença. Caderno de Saúde Pública, n. 4, v. 19. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, julho de 2003, p. 6.
6______ALVES, Paulo César. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas da doença: breve revisão crítica. Caderno de Saúde Pública, n. 8, Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública, agosto de 2006, p. 2-3.
7______XAVIER, Francisco Cândido. Ação e reação. Pelo Espírito André Luiz. 28. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2007. Cap. 19, p. 320-321.
MARTA ANTUNES MOURA Reformador 08.2008