Um Caso de Possessão
UM CASO DE POSSESSÃO.
Senhorita Julie, Janeiro 1864
(2º artigo. – Ver o número de dezembro de 1863.)
Em nosso precedente artigo descrevemos a triste situação dessa jovem, e as circunstâncias que provam nela uma verdadeira possessão. Estamos felizes ao confirmar o que dissemos de sua cura, hoje completa. Depois de ser livrada de seu Espírito obsessor, os violentos abalos que sentira durante mais de seis meses tinham-lhe trazido uma grave perturbação em sua saúde; agora está inteiramente refeita, mas não saiu de seu estado sonambúlico, o que não a impede de aplicar-se aos seus trabalhos habituais. Vamos expor as circunstâncias dessa cura.
Várias pessoas tinham empreendido magnetizá-la, mas sem muito sucesso, salvo uma leve e passageira melhora em seu estado patológico; quanto ao Espírito, estava cada vez mais tenaz, e as crises tinham atingido um grau de violência dos mais inquietantes.
Teria sido preciso ali um magnetizador nas condições que indicamos no artigo precedente para os médiuns curadores, quer dizer, penetrando o enfermo de um fluido bastante puro para eliminar o fluido do mau Espírito. Se há um gênero de mediunidade que exige uma superioridade moral, é sem contradita no caso de obsessão, porque é necessário ter o direito de impor sua autoridade ao Espírito. Os casos de possessão, segundo o que foi anunciado, devem se multiplicar com uma grande energia daqui a algum tempo, a fim de que a impossibilidade dos meios empregados até o presente, para combatê-los, esteja
bem demonstrada. Uma circunstância mesmo, da qual não podemos ainda falar, mas que 9
tem uma certa analogia com o que se passou ao tempo do Cristo, contribuirá para desenvolver essa espécie de epidemia demoníaca. Não é, pois, duvidoso que surgirão médiuns especiais tendo o poder de expulsar os maus Espíritos, como os apóstolos tinham o de expulsar os demônios, seja porque Deus coloca sempre o remédio ao lado do mal, seja para dar aos incrédulos uma nova prova da existência dos Espíritos.
Para a senhorita Julie, como em todos os casos análogos, o magnetismo simples, embora enérgico que fosse, era, pois, insuficiente; seria preciso agir simultaneamente sobre o Espírito obsessor para domá-lo, e sobre o moral do enfermo enfraquecido por todos esses abalos; o mal físico não era senão consecutivo; era um efeito e não a causa; seria preciso, pois, tratar a causa antes do efeito; destruído o mal moral, o mal físico deveria desaparecer por si mesmo. Mas para isso era preciso se identificar com a causa; estudar com o maior cuidado e em todas suas nuanças o curso das idéias, para lhe imprimir tal ou tal direção mais favorável, porque os sintomas variam segundo o grau de inteligência do sujeito, o caráter do Espírito e os motivos da obsessão, motivos cuja origem remonta, quase sempre, às existências anteriores.
O insucesso do magnetismo sobre a senhorita Julie fez com que várias pessoas tentassem; no número delas achava-se um jovem dotado de uma grande força fluídica, mas a quem, infelizmente, faltava totalmente a experiência, e, sobretudo, conhecimentos necessários em semelhante caso. Atribuía-se um poder absoluto sobre os Espíritos inferiores que, segundo ele, não podiam resistir à sua vontade; essa pretensão, levada ao excesso e fundada sobre sua força pessoal, e não sobre a assistência dos bons Espíritos, devia lhe atrair mais de uma decepção. Só isso teria devido bastar para mostrar, aos amigos
da jovem, que lhe faltava a primeira das qualidades requeridas para lhe ser um socorro eficaz. Mas o que, acima de tudo, teria devido esclarecê-los, é que ele professava, sobre os Espíritos em geral, uma opinião completamente falsa. Segundo ele, os Espíritos superiores são de uma natureza fluídica muito etérea para poderem vir sobre a Terra comunicar-se com os homens e assisti-los; isso não é possível senão aos Espíritos inferiores em razão de sua natureza mais grosseira. Essa opinião, que não é outra senão a da doutrina da comunicação exclusiva dos demônios, tinha um erro muito grave de sustentá-la diante do enfermo, mesmo nos momentos de crise. Com esta maneira de ver, devia não contar senão consigo mesmo, e não podia invocar a única assistência que teria podido secundá-lo, assistência da qual, é verdade, acreditava não necessitar; a consequência mais lastimável era para o enfermo que desencorajava, tirando-lhe a esperança da assistência dos bons Espíritos. No estado de enfraquecimento em que estava seu cérebro, uma tal crença, que dava toda presa ao Espírito obsessor, podia se tornar fatal para a sua razão, podia mesmo matá-la. Também repetia-lhe, sem cessar, nos momentos de crise: “Louca… louca… ele me tornará louca… inteiramente louca… não o sou ainda, mas tornar-me-ei.” Falando de seu magnetizador, ela pintava perfeitamente sua ação dizendo: “Ele me dá a força do corpo, mas não me dá a força do espírito.” Esta palavra era profundamente significativa, e, no entanto, ninguém lhe atribuía importância.
Quando vimos a senhorita Julie, o mal estava em seu apogeu, e a crise, da qual fomos testemunha, foi uma das mais violentas; foi no momento mesmo em que nos aplicamos em elevar seu moral, em que procuramos lhe inculcar o pensamento de que ela podia domar esse mau Espírito com a assistência dos bons e de seu anjo guardião, do qual invocaria o apoio, foi nesse momento, dizíamos, que o jovem magnetizador, que se encontrava presente, por uma circunstância providencial, sem dúvida, veio, sem provocação nenhuma, afirmar e desenvolver a sua teoria, destruindo de um lado o que fazíamos de outro. Tivemos que lhe expor com energia que cometia uma ação má, assumindo sobre si a terrível responsabilidade da razão e da vida dessa infeliz jovem.
Um fato dos mais singulares, que todo mundo havia observado, mas do qual ninguém havia deduzido as consequências, se produzia na magnetização. Quando ela ocorria durante a luta com o mau Espírito, este último, sozinho, absorvia todo o fluido que lhe 10 dava mais força, ao passo que a enferma se achava enfraquecida e sucumbia sob seus apertos. Deve-se lembrar que ela estava sempre em estado de sonambulismo; via, por consequência, o que se passava, e é ela mesma que dá esta explicação. Não se viu nesse fato senão uma malícia do Espírito, e contentou-se em abster-se de magnetizar nesses momentos e de ficar como espectador da luta. Com o conhecimento da natureza dos fluidos, pode-se facilmente se dar conta desse fenômeno. É evidente, primeiro, que absorvendo o fluido para se dar a força em detrimento da enferma, o Espírito queria convencer o magnetizador da impossibilidade com respeito à sua pretensão; se havia malícia de sua parte, era contra o magnetizador, uma vez que se servia da própria arma com a qual este último pretendia derrubá-lo; pode-se dizer que lhe tirava o bastão das mãos. Era não menos evidente que sua facilidade em se apropriar do fluido do magnetizador denotava uma afinidade entre esse fluido e o seu próprio, ao passo que os fluidos de uma natureza contrária teriam se repelido, como a água e o azeite. Só esse fato bastaria para demonstrar que havia outras condições a preencher. É, pois, um erro dos mais graves, e podemos dizer dos mais funestos, o de não ver na ação magnética senão uma simples emissão fluídica, sem ter em conta da qualidade íntima dos fluidos. Na maioria dos casos, o sucesso repousa inteiramente sobre essas qualidades, como na terapêutica depende da qualidade do medicamento. Não saberíamos muito chamar a atenção sobre este ponto capital, demonstrado, ao mesmo tempo, pela lógica e pela experiência.
Para combater a influência da doutrina do magnetizador que, já, tinha influído sobre as idéias da enferma, dissemos a esta: “Minha filha, tende confiança em Deus; olhai ao vosso redor; não vedes os bons Espíritos? – É verdade, disse ela; vejo-os luminosos, que Frédégonde não ousa olhar. – Pois bem! esses são aqueles que vos protegem e que não permitirão que o mau Espírito tenha o poder; implorai a sua assistência; orai com fervor; orai sobretudo para Frédégonde. -Oh! para isso, jamais o poderei. – Guardai-vos! Vereis com essa palavra os bons Espíritos se afastarem. Se quereis sua proteção, é preciso merecê-la por vossos bons sentimentos, em vos esforçando sobretudo em ser melhor do que
vosso inimigo. Como quereis que vos sustentem, se não vaieis mais do que ele? Pensai que, em outras existências, tivestes também censura a vos fazer; o que vos chega é uma expiação; se quereis fazê-la cessar, é preciso vos melhorar, e para provar as vossas boas intenções, é preciso começar por vos mostrar boa e caridosa para com o vosso inimigo. A própria Frédégonde com isso será tocada, e talvez fareis entrar o arrependimento em seu coração. Refleti. – Eu o farei. -Fazei-o em seguida, e dizei comigo: “Meu Deus, eu perdoo a Frédégonde o mal que ela me fez; eu a aceito como uma prova e uma expiação que mereci; perdoai minhas próprias faltas, como lhe perdôo as suas; e vós, bons Espíritos que me cereais, abri seu coração a melhores sentimentos, e dai-me a força que me falta.
Prometeis orar todos os dias por ela? – Eu o prometo. – Está bem; de meu lado vou me ocupar convosco e dela; tende confiança. -Oh! obrigado! alguma coisa me diz que isto vai logo acabar.”
Tendo dado conta desta cena à Sociedade, as instruções seguintes ali foram dadas a este respeito:
“O assunto do qual vos ocupais emocionou os próprios bons Espíritos que querem, ao seu turno, vir em ajuda a essa jovem com os seus conselhos. Ela apresenta um caso de obsessão, com efeito muito grave, e entre aqueles que tendes visto, e que vereis ainda, pode-se colocar este no número dos mais importantes, dos mais sérios, e sobretudo dos mais interessantes pelas particularidades instrutivas que já apresentou e que vos oferecerá de novo.
“Como já vos disse, esses casos de obsessão se renovarão freqüentemente, e fornecerão dois assuntos distintos de utilidade, para vós primeiro, e para aqueles que o sofrerão em seguida.
“Para vós primeiro, naquilo que, do mesmo modo que vários eclesiásticos contribuíram poderosamente para difundir o Espiritismo entre aqueles que lhe eram perfeitamente 11
estranhos, do mesmo modo também esses obsidiados, cujo número se tornará bastante importante para que deles não se ocupe de maneira não superficial, mas grande e profunda, abrirão bastante as portas da ciência para que a filosofia espírita possa com eles nela penetrar, e ocupar, entre as pessoas de ciência e os médicos de todos os sistemas, o lugar ao qual tem direito.
“Para eles em seguida, naquilo que, no estado de Espírito, antes de se encarnarem entre vós aceitaram essa luta que lhes proporciona a possessão que sofrem, tendo em vista o seu adiantamento, e essa luta, crede-o bem, faz cruelmente sofrer seu próprio Espírito que, quando seu corpo, de algum modo, não é mais seu, tem perfeitamente consciência do que se passa. Segundo terão suportado essa prova, da qual podeis abreviar-lhes poderosamente a duração por vossas preces, terão progredido mais ou menos; porque, estejais disto certos, apesar dessa possessão, sempre momentânea, guardam uma suficiente
consciência de si mesmos para discernir a causa e a natureza de sua obsessão.
“Para aquela que vos ocupa, um conselho é necessário. As magnetizações que lhe faz suportar o Espírito encarnado do qual lhe falastes, são funestas sob todos os aspectos.
Esse Espírito é sistemático; e que sistema! Aquele que não relaciona todas as suas ações à maior glória de Deus, que tira a vaidade das faculdades que lhe foram concedidas, será sempre confundido; os presunçosos serão rebaixados, neste mundo, freqüentemente, infalivelmente no outro. Tratai, pois, meu caro Kardec, que essas magnetizações cessem completamente, ou os inconvenientes mais graves resultarão de sua continuação, não só para a jovem, mas ainda para o imprudente que pensa ter sob suas ordens todos os Espíritos das trevas e os comandar como senhor.
“Vereis, digo, esses casos de possessão e de obsessão se desenvolverem durante um certo período de tempo, porque são úteis ao progresso da ciência e do Espiritismo; será por aí que os médicos e os sábios abrirão, enfim, os olhos e aprenderão que há enfermidades cujas causas não estão na matéria, e que não devem ser tratadas pela matéria.
Esses casos de possessão, igualmente, vão abrir ao magnetismo horizontes totalmente novos e levá-lo a dar grande passo adiante pelo estudo, até o presente tão imperfeito, dos fluidos; com a ajuda desses novos conhecimentos, e pela sua aliança íntima com o Espiritismo, obterá as maiores coisas; infelizmente, no magnetismo, como na medicina, haverá por muito tempo ainda homens que crerão não terem mais nada a aprender. Essas obsessões freqüentes terão também um lado muito bom, naquilo que sendo penetrada pela prece e pela força moral, pode-se fazê-las cessar e adquirir o direito de expulsar os maus Espíritos, cada um procurará, pela melhoria de sua conduta, adquirir esse direito que o Espírito de Verdade, que dirige este globo, conferirá quando for merecido. Tende fé e confiança em Deus, que não permite que se sofra inutilmente e sem motivo.”
HAHNEMANN (Médium, Sr. Albert).
“Serei breve. Será muito fácil curar essa infeliz possessa; os meios para isto estão implicitamente contidos nas reflexões que foram emitidas há pouco por Allan Kardec. É preciso não só uma ação material e moral, mas ainda uma ação puramente espiritual. Ao Espírito encarnado que se encontra, como Julie, em estado de possessão, é preciso um magnetizador experimentado e perfeitamente convencido da verdade Espírita; é preciso que seja, além disso, de uma moralidade irrepreensível e sem presunção. Mas, para agir sobre o Espírito obsessor, é necessário a ação não menos enérgica de um bom Espírito desencarnado. Assim, pois, dupla ação: ação terrestre, ação extraterrena; encarnado sobre
encarnado, desencarnado sobre desencarnado; eis a lei. Se até esta hora essa ação não foi cumprida, é justamente para vos levar ao estudo e à experimentação dessa interessante questão; foi por este efeito que Julie não foi livrada mais cedo: ela deveria servir para os vossos estudos.
“Isso nos demonstra o que tereis a fazer doravante nos casos de possessão manifesta; é indispensável chamar em vossa ajuda 12 o concurso de um Espírito elevado, gozando, ao mesmo tempo, de um poder moral e fluídico, como, por exemplo, o excelente cura d’Ars, e sabeis que podeis contar com a assistência desse digno e santo Vianney. Além disso, nosso concurso é dado a todos aqueles que nos chamarem em sua ajuda, com pureza do coração e fé verdadeira.
“Resumindo: Quando se magnetizar Julie, será preciso primeiro proceder pela fervorosa evocação do cura d’Ars e de outros bons Espíritos que se comunicam habitualmente entre vós, rogando-lhes agirem contra os maus Espíritos que perseguem essa jovem, e que fugirão diante de suas falanges luminosas. Não é preciso esquecer, não mais, que a prece coletiva tem um poder muito grande, quando é feita por um certo número de pessoas agindo de acordo, com fé viva e um desejo ardente de aliviar.”
ERASTO (Médium, Sr. d’Ambel)
Estas instruções foram seguidas; vários membros da Sociedade se entenderam para agir pela prece em condições desejadas. Um ponto essencial era levar o Espírito obsessor a se emendar, o que deveria, necessariamente, facilitar a cura. Foi o que se fez evocando-o e dando-lhe conselhos; prometeu não mais atormentar a senhorita Julie, e teve palavra. Um de nossos colegas foi especialmente encarregado, por seu guia espiritual, de sua educação moral, e ocorreu de nisso ser satisfeito. Esse Espírito, hoje, trabalha seriamente pela sua melhoria e pede uma nova encarnação para expiar e reparar suas faltas.
A importância do ensino que decorre deste fato e das observações às quais deu lugar, não escapará a ninguém, e cada um nele poderá haurir muitas instruções segundo a ocorrência. Uma nota essencial que esse fato permitiu constatar, e que se compreenderá sem dificuldade, é a influência do bem. É muito evidente que se a companhia secunda por uma comunidade de vista, de intenção e de ação, o enfermo se encontra numa espécie de atmosfera homogênea de fluidos benfazejos, o que deve, necessariamente, facilitar e apressar o sucesso; mas se houver desacordo, oposição; se cada um quer agir à sua maneira, disso resulta desacordos, correntes contrárias que paralisar forçosamente, e às vezes anulam, os esforços tentados para a cura. Os eflúvios fluídicos, que constituem a atmosfera moral, se são maus, são também funestos a certos indivíduos quanto as exalações das regiões pantanosas.