A Mulher Cananeia
Certos ditos e comportamentos de Jesus de Nazaré, relatados no Evangelho, fazem tão singular contraste com o seu modo habitual de falar e agir, que nós, instintivamente, os repelimos, chocados com a inesperada agressividade daquele que é considerado o maior paradigma da bondade e do equilíbrio.
Muitos cristãos tradicionalistas se satisfazem com a velha explicação de que o lado. humano do Cristo, suscetível de sentir raiva, irritação e enfado revelava-se nessas situações.
Nós, espíritas, no entanto, buscadores da fé raciocinada, sentimos necessidade de explicações mais
lógicas para compreender essas.aparentes contradições do Nazareno, pois não podemos aceitar que
uma Entidade de tamanha envergadura seja vítima de emoções tão incipientes.
Foi por isso que Allan Kardec dedicou todo um capítulo de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, o de número XXIII, intitulado Estranha Moral, à análise dessa questão.
Didaticamente o gigante lionês demonstrou que boa parte da singularidade desses trechos decorre da problemática linguística e cultural.
Com a palavra o Codificador:
“Escritas depois de sua morte, pois que nenhum dos Evangelhos foi redigido enquanto ele vivia, lícito é acreditar-se que (…) o fundo do seu pensamento não foi bem expresso, ou, o que não é menos provável, o sentido primitivo, passando de uma língua para outra, há de ter experimentado alguma alteração. Basta que um erro se haja cometido uma vez, para que os copiadores o tenham repetido, como se dá frequentemente com relação aos fatos históricos.”
Continua Kardec, mais a frente:
“Cumpre, ao demais, se atenda aos costumes e ao caráter dos povos
(o grifo é nosso), pelo muito que influem sobre o gênio particular de seus idiomas. Sem esse conhecimento, escapa amiúde o sentido verdadeiro de certas palavras.“
Agindo assim, não corremos. o risco de desprezar partes importantes do Evangelho apenas pela má impressão que elas inicialmente nos causam; fruto de nossa ignorância linguística e cultural da época em que Jesus viveu.
Foi com essa recomendação do Mestre lionês que nos atiramos à história da Mulher Cananéia, contida nas anotações de Mateus (15:21-28) e Marcos (7:24-30), com a finalidade de fazer uma palestra num Centro Espírita que estuda metodicamente o Novo Testamento em uma de suas reuniões públicas.
A princípio, achamos a passagem meio árida, mas, bafejada pela lógica espiritista, ela acabou se revelando belíssima. Não foi à toa que o Prof. Rivail disse, na Introdução de sua jã citada obra: “Muitos pontos dos Evangelhos, da Bíblia e dos autores sacros em geral só são ininteligíveis, parecendo alguns até irracionais, por falta da chave que faculte se lhes apreenda o verdadeiro sentido.,,2 Essa chave está completa no Espiritismo, como ele afirmava.
O capítulo da Mulher Cananéia tem início quando Jesus se retira de Cafarnaum, onde acabara de exprobar o comportamento de alguns fariseus, seguindo para a região de Tiro e Sidom, fora dos limites da Palestina. Tiro e Sidom eram duas cidades que ficavam num território não israelita, situado a Noroeste da Galiléia e chamado pelos estrangeiros de Síria-Fenícia, desde que os fenícios, derrotados pelo poderio de César, foram anexados à província romana da Síria.
Essa mesma localidade também era conhecida pelos judeus como Canaã, pois nela igualmente habitavam os remanescentes dos cananeus, antigos habitantes da ancestral Terra de Canaã (a histórica faixa de terra que ia do Mar Mediterrâneo ao Rio Jordão, limitada pelo Monte Hermon, ao Norte, e pelo Mar Morto, ao Sul), antes que os hebreus os tivessem definitivamente vencido, ao longo
de contínuos enfrentamentos e batalhas aparentemente, a intenção do Rabi Galileu, ao empreender tão longa caminhada, que, segundo Huberto Rohden, podia durar de quatro a cinco dias, era isolar-se
na residência de algum amigo israelita que morava entre Tiro e Sidom, com a finalidade de arrefecer
o ódio dos fariseus e proporcionar mais tempo à instrução dos discípulos. O documento de Marcos dá subsídio a essa hipótese, ao afirmar que Jesus “entrando numa casa, não queria que ninguém o soubesse, mas não pôde ocultar-se”.
Na verdade, como vemos no Evangelho de Mateus, antes mesmo que o Mestre chegasse a seu destino, já havia sido reconhecido no caminho por uma mulher cananéia, ou síria-fenícia, como prefere o filho de Maria, Marcos.
A fama do novo profeta de Israel já havia chegado àquelas cercanias e a mulher pretendia se valer de seus poderes para curar a filha que, segundo ela mesma afirmava, estava “horrivelmente endemoniada“, ou, na linguagem espírita, vitimada por dolorosa subjugação, a mais virulenta forma de obsessão espiritual esse e outros capítulos do Novo Testamento provam, para os companheiros católicos e evangélicos, que a problemática da possessão não é, como eles afirmam, alimentada pelo exercício da mediunidade, sob a luz do Espiritismo.
Afinal, na época em que o Nazareno viveu não existiam médiuns e Espiritismo, no sentido estrito dos termos, e os obsidiados enxameavam. Sobre o assunto, o Espírito Emmanuel publicou interessante página no livro “Seara dos Médiuns,4, reafirmando o clássico conceito kardequiano de que “o conhecimento do Espiritismo, longe de facilitar o predomínio dos maus Espíritos, há de ter como resultado (…) destruir esse predomínio”. (Grifo original.)
Ao primeiro pedido da Cananéia, Jesus respondeu com o silêncio.
Contudo, a mulher continuou insistindo. Os discípulos, exasperados, pediram ao Rabi que a atendesse, pois ela, apesar da aparente negativa de Jesus, continuou a seguir o grupo na via pública, clamando por ajuda.
O Galileu, então, redarguiu: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.” Com essa resposta, o Mestre procurava demonstrar que sua ação pessoal possuía uma limitação territorial, imposta pelo programa divino. A sua missão específica era celebrar a Nova Aliança com os judeus, milenares defensores da ideia do Deus único. Só mais tarde, os gentios (povos não israelitas, pagãos) receberiam a Boa Nova, através de seus primeiros discípulos.
Como diz o já citado Rohden, Jesus de Nazaré “( …) restringe a sua atividade àquele reduzido círculo de ouvintes, quando com muito maior brilho e eficácia podia pregar o Evangelho no aerópago de Atenas, no fórum de Roma, no grande empório comercial de Alexandria ou nos quartéis militares de Cartago; podia falar aos .sábios e aos poderosos do mundo; podia percorrer povos e países, como mais tarde fizeram Paulo de Tarso, Francisco Xavier, Livingstone e tantos outros pioneiros do Evangelho. Mas a vontade do Pai não era esta e Jesus não queria um aposto lado, por mais deslumbrante, que não fosse conforme a vontade de Deus. 6
Resistindo a indiferença do taumaturgo estrangeiro, a Cananéia dirige-lhe nova súplica: “Senhor, socorre-me!”.
Ele, então, responde-lhe diretamente: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos.”
Poucas pessoas confessam, mas a grande maioria fica chocada com esse comportamento do Nazareno.
Ante uma mãe sofredora, cuja filha sofria de tenaz obsessão, ele primeiramente silencia, depois dá uma explicação fria e indireta para sua indiferença e, finalmente, nega-se claramente a atendê-Ia, comparando-a a cachorrinhos (!).
Conforme a recomendação de Allan Kardec, é aqui que entra a necessidade de nos aprofundarmos
mais na problemática cultural e linguística, a fim de melhor entendermos a lógica do Evangelho.
A primeira coisa a considerar é a psicologia dos Espíritos superiores.
Donos de um psiquismo privilegiado, que enxerga o passado e alguns aspectos do futuro, que percebe todas as nuanças psicológicas de seus interlocutores, que vê o físico e o extrafísico, que conhece as reais necessidades daqueles que os procuram, esses indivíduos têm uma. dialética toda especial, inteiramente ajustada às necessidades de cada momento e de cada instruendo. São como caleidoscópios mágicos que se ajustam a cada indivíduo. Por isso, muitas vezes são severos com algumas pessoas, enquanto todos agiriam com alienante benevolência. E vice–versa.
Aliás, a severidade nunca esteve descarada na relação mestre–discípulo.
Com Jesus de Nazaré, coordenador espiritual do Planeta, não podia ser diferente. Por isso é que vemos o Cristo falar por parábolas e agir de maneira tão diferenciada.
Às vezes, até aparentemente contraditória.
Aparentemente – frisemos bem!
O Raboni, naturalmente, conhecia em profundidade o drama daquela mãe e as razões cármicas do problema da filha.
Muito provavelmente, a mulher tinha como prova: vencer o orgulho, a fim de lutar incondicionalmente
pela saúde da menina. Na programação de ambas, a libertação da mocinha devia depender da vitória da Cananéia sobre si mesma.
O motivo? Ninguém sofre sem razão de ser. Com certeza, a alienada tinha débitos com a Economia Cósmica e a genitora havia colaborado para sua decadência moral.
Naquela ou em outras encamações. Pela situação humilhante das duas, a egolatria deve ter sido, de fato, a causa de seus equívocos. Além disso, se a dama síría-fenícia passasse pelas difíceis provas da humildade, paciência e perseverança, ela se tornaria um paradigma para o futuro. Em sua obra “Sabedoria do Evangelho” Carlos Pastorino lembra que todos os personagens do Evangelho, embora
tenham tido existência real, são também símbolos do fascinante romance da evolução.
Senão bastasse tudo isso, o mesmo Pastorino, com seu imenso conhecimento das línguas antigas, é de opinião que o diminutivo cachorrinhos não é depreciativo.
Antes carinhoso, pois estabelece uma comparação com os cãezinhos tratados dentro de casa, junto com as crianças, e que, às vezes, comem a mesma comida dos donos, só que um pouco mais tarde. Exatamente como deveria acontecer com os gentios.
Em tomo dessa frase, o saudoso comentarista do Novo Testamento chega a construir uma hipótese. Na sua opinião, Jesus a pronunciou com um benevolente sorriso, como a desculpar-se.
Não obstante, pela mesma expressão, o Mestre demonstrava que sua posição ainda podia ser vencida pela insistência e humildade da requerente. Na verdade,· o Nazareno estava dando a deixa, como se diz na linguagem teatral, para a resposta da mulher. Ele queria que ela confirnasse o princípio enunciado 600 anos antes porLao- Tsé no Tao-Te King: “A doçura triunfa da dureza, a fraqueza triunfa da força” (Ideograma 36).
E foi exatamente o que aconteceu. Munindo-se de extrema decisão, a mulher dá a Jesus uma resposta eivada de lógica e sabedoria, a resposta que o Cristo aguardava:
“Sim, Senhor, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos.“
Feliz, o Rabi Galileu parabeniza a cananéia: “O mulher, grande é a tua fé! Seja feito como tu queres.”
A partir daquele momento, as anotações de Mateus e Marcos afirmam que o Espírito mau retirou-se
definitivamente da psicosfera da menina.
O segundo evangelista vai mais além e nos informa que, voltando para casa, a síria-fenícia encontrou
a menina deitada sobre a cama, completamente restabelecida.
Os leitores que desejarem mais detalhes sobre o método desobssessivo empregado por Jesus podem recorrer à análise que Kardec fez sobre o assunto em “A Gênese” .10
Estava provado que o Amor pode interceder junto à Justiça. Simão Pedro, mais tarde, iria formalizar esse postulado no versículo 8, Capítulo 4 de sua Primeira Epístola: “( …) o amor cobre uma multidão
de pecados”.
Além do aspecto espetacular, essa cura a distância, assim como a do criado do centurião romano, tem, para Santo Agostinho, um sentido simbólico. Na opinião do Bispo de Hipona, “são a representação de que os pagãos seriam salvos apenas pelas palavras do Cristo, sem serem visitados
diretamente por ele” .11
Analisando esse trecho do Evangelho, o autor católico Monsenhor Louis Pirot afirma: “Deve-se citar o exemplo da síriia-fenícia e como modelo de prece suscetível de tudo obter, por ser feita e com fé, humildade e perseverança. Tudo estava contra essa mulher, primeiro sua religião e sua raça, depois a atitude pouco animadora dos apóstolos, o silêncio e, afinal, a recusa de Jesus.
Não obstante, pode dizer-se que ela esperou com esperança e sua prece foi ouvida.1
Concordamos inteiramente com o respeitável sacerdote, mas acreditamos que a simbologia não se encerra aí. A mulher Cananéia é também um símbolo dos pais que lutam, sem desanimar, contra as doenças dos filhos.
É também um símbolo da vitória contra os preconceitos de raça e religião.
E também um símbolo da união entre a fé e a razão, pois sua resposta foi um primor de lógica e racionalidade.
É também um símbolo da ousadia positiva, pois, mesmo reconhecendo sua pequenez, teve confiança em si e não titubeou diante da grandeza do Mestre.
É também um símbolo da caridade, pois provou que sempre é possível dividir as “migalhas” com os “cachorrinhos”.
Sem medo de exagerar, poderíamos também tomá-Ia como símbolo de nossa Campanha “Em Defesa da Vida”, pois toda sua ação foi um hino de confiança na Vida, concessão máxima que a Divindade nos faz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. Item 3, 12 e 42 parágrafos, páginas 334 e 335 da 109ª edição FEB.
2. 62 parágrafo, página 27 da 109ª edição FEB.
3. Em doze séculos, os conterrâneos de Jesus receberam várias denominações. Antes da chegada à Terra de Canaã (1235 a.C.), eram chamados de hebreu. Da instalação em Canaã até o exílio da Babilônia (1235-586 a.C), tornaram o nome de israelitas. Depois do exílio, foram definitivamente cognominados de judeus. No mesmo período, o país do Deus único foi chamado de Terra Prometida, Israel, Reino de Israel (ao Norte) e Reino de Judá (ao Sul). Após a deportação imposta por Nabucodonosor, a nação foi dividida em três regiões: Galiléia (Norte), Samaria (Centro) e Judéia (Sul). Palestina era o nome dado pelos gregos e romanos.
4. Página 59 da 811 edição FEB.
5. “O Livro dos Médiuns”, Capítulo XXIII, Item 244, 22 parágrafo, página 312 da 6(j1 edição FEB.
6. “Jesus Nazareno”, Volume I, página 203 da 8ª edição, Editora Martin Claret.
7. “O conhecimento do futuro depende do grau de perfeição do Esptrito (…). Mas dizer que conheçamos o futuro sem restrições seria nivelar–nos com Deus” – Espírito Bernard Palissy, Revista Esptrita, página 115 do Volume 1858, EDICEL.
8. Sobre o assunto, sugerimos analisar a relação do Espírito Ernrnanuel com seu médium Francisco Cândido Xavier. Os casos estão citados nas inúmeras biografias do Chico. Sem falar no ·relacionamento dos mestres orientais com seus tutelados.
9. Volume I, página l l , Grupo Editorial Spiritus.
10. Capítulo XV, Possessos, Item 33.
11. Questiones Evangelicae, “Patrologia Latina”, Volume 35, Coluna 1327.
12. “La Saint Bible”, Volume IX, página 485.
Reformador julho 1995 – Mauro Quintella