Cartas do dr. Morhéry sobre a Srta. Desirée Godu
Revista Espírita, abril de 1860
Falamos da notável faculdade da senhorita Desirée Godu, como médium curadora, e pudemos citar os atestado autênticos que temos sob os olhos; mas eis um testemunho do qual ninguém pode contestar a alta importância; não é mais um desses certificados que, freqüentemente se entrega com um pouco de leviandade, é o resultado de observações sérias de urrt homem de saber, eminentemente competente para apreciar as coisas sob o duplo ponto de vista da ciência e do Espiritismo. O senhor doutor Morhéry nos dirigiu as duas cartas seguintes, que nossos leitores nos agradecerão por reproduzi-las. “Plessis-Boudet, près Loudèac (Côtes-du-Nord). “Senhor Allan Kardec, “Se bem que esmagado de ocupações neste momento, como membro correspondente da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, crê dever vos informar de um acontecimento inesperado para mim e que, sem dúvida, interessa a todos os nossos colegas”. “Falastes com elogio, nos últimos números de vossa Revista, da senhorita Desirée Godu, de Hennebon. Dissestes que após ter sido médium vidente, médium audiente e médium escrevente, essa senhorita tornou-se, desde alguns anos, médium curadora. Foi nessa última qualidade que ela se dirigiu a mim, e reclamou-me o concurso, como doutor em medicina, para provar a eficácia de sua medicação, que se poderia chamar, eu creio, Espirítica. De início, pensei que as ameaças que lhe eram feitas e os obstáculos que colocavam à sua prática médica, sem diploma, era a única causa da sua diligência; mas ela disse-me que o Espírito que a dirige, há seis anos, aconselhou como necessária, do ponto de vista da Doutrina Espírita. Qualquer que o seja, acreditei que era meu dever, e do interesse da Humanidade, aceitar a sua generosa proposição, mas duvido que ela se realizasse. Sem conhecê-la, nem tê-la visto jamais, soube que essa jovem e piedosa pessoa não quis separar-se de sua família senão numa circunstância excepcional e ainda para cumprir uma missão, não menos importante, com a idade de 17 anos. Portanto, fiquei bem agradavelmente surpreso em vê-la chegar a minha casa, conduzida por sua mãe, que ela deixou, no dia seguinte, com um profundo desgosto; mas esse desgosto estava temperado pela coragem da resignação. Há dez dias, a senhorita Godu está no meio de minha família, à qual constitui uma alegria, apesar de sua ocupação enervante. “Desde a sua chegada, já consignara 75 casos de observações de moléstias diversas e contra as quais, na maioria, os recursos da medicina fracassaram”. Temos casos de amauroses, de oftalmias graves, de paralisias antigas e rebeldes a todo tratamento, escrofulosos, herpéticos, cataratas e cânceres no último período; todos esses casos são numerados, a natureza da doença é constatada por mim, os curativos são mencionados, e tudo é levado em conta como numa sala de clínica destinada às observações. Ainda não há bastante tempo para que possa pronunciar-me, de maneira peremptória, sobre as curas operadas por medicação da senhorita Godu; mas, desde hoje, posso manifestar minha surpresa pelos resultados revulsivos que ela obtêm pela aplicação de seus ungüentos, cujos efeitos variam ao infinito, por uma causa que eu não saberia me explicar com as regras comuns da ciência. Vi também, com prazer, que ela cortava as febres sem nenhuma preparação de quinino ou de seus extratos, e pela simples infusão de flores ou de folhas de diversas plantas. “Sigo, sobretudo, com vivo interesse, o tratamento de um câncer no terceiro período. Esse câncer, que foi constatado e tratado, sem sucesso como sempre, por vários de meus confrades, é o objeto da maior preocupação da senhorita Godu. Não foi nem uma, nem duas vezes que ela o tratou, mas bem todas as horas. Desejo muito vivamente que seus esforços sejam coroados de sucesso, e que ela cure esse indigente, que trata com zelo acima de todo elogio. Se ela triunfar sobre aquele, naturalmente, pode se esperar que triunfará sobre outros, e neste caso prestará um imenso serviço à Humanidade, curando esta horrível e atroz moléstia. Sei que alguns confrades maldizentes poderão rir das esperanças com as quais me embalo; mas que me importa se essa esperança se realizar! Já me censuraram por prestar, assim, meu concurso a uma pessoa, da qual ninguém contesta a intenção, mas da qual a maioria lhe nega à aptidão para curar, uma vez que essa aptidão não lhe foi dada pela Faculdade. “A isso responderei: não foi a Faculdade que descobriu a vacina, mas simples padres; não foi a Faculdade que descobriu as cascas de árvores do Peru, mas os indígenas desse país”. A Faculdade constata os fatos; agrupa-os e classifica-os para formar com eles a preciosa base do ensinamento, mas ela não os produz exclusivamente. Alguns tolos (infelizmente são encontrados aqui como em toda parte) crêem se darem do espírito qualificando a senhorita Godu de feiticeira. Seguramente, é uma amável e bem útil feiticeira, porque ela não inspira nenhum medo da feitiçaria, nem nenhum desejo de consagrá-la à fogueira. “A outros, que pretendem ser ela um instrumento do demônio, responderei, muito sem cerimônia; se o demônio vem à Terra para curar os incuráveis, abandonados e indigentes, seria necessário concluir que o demônio, enfim, se converteu e tem direito aos nossos agradecimentos; ora, duvido muito que, entre aqueles que têm essa linguagem, não haja muitos que não preferem ainda curar por suas mãos a morrer pelas de um médico. Tomemos, portanto, o bem de onde ele venha, e, a menos de prova autêntica, não lhe atribuamos o mérito ao diabo. É mais moral e mais racional atribuir o bem a Deus e agradecê-lo por ele, e sob esse aspecto penso que meu conselho será partilhado por vós e por todos os meus colegas. “De resto, que isso se torne ou não uma realidade, resultará sempre alguma coisa para a ciência”. Eu não sou homem para deixar, no esquecimento, certos meios empregados que hoje negligenciamos muito. A medicina, diz-se, fez imensos progressos; sim, sem dúvida, para a ciência, mas não tanto para a arte de curar. Muito aprendemos e muito olvidamos; o Espírito humano é como o Oceano: não pode tudo abarcar quando invade uma praia, deixa uma outra. Retornarei a este assunto e vos manterei ao corrente desta curiosa experimentação. Dou-lhe a maior importância; se ela triunfar, isso será manifestação brilhante contra a qual será impossível lutar porque nada detém aqueles que sofrem e querem se curar. Estou decidido a tudo afrontar nesse objetivo, mesmo ao ridículo que se teme tanto na França. “Aproveito a ocasião para vos dirigir minha tese inaugural. Se consentirdes tomar o trabalho de lê-la, compreendereis facilmente o quanto estou disposto a admitir o Espiritismo. Essa tese foi sustentada quando a medicina estava caída no mais profundo materialismo. Era um protesto contra essa corrente que nos arrastou à medicina orgânica e à farmacologia mineral, das quais se fez tão grande abuso. Quantas saúdes arruinadas pelo uso dessas substâncias minerais que, em caso de fracasso, aumentam o mal, e, em casos de sucesso, freqüentemente, deixam muitos traços na nossa organização! Aceitai, etc. MORHÉRY.” “Senhor”, “20 de março de 1860”. “Na minha última carta vos anunciei que a senhorita Desirée Godu consentira vir exercer, sob meus olhos, sua faculdade curativa; hoje venho vos dar algumas novidades”. “Desde 25 de fevereiro, comecei minhas observações sobre um grande número de doentes, quase todos indigentes, e na impossibilidade de se tratarem convenientemente”. Alguns têm doenças pouco importantes; mas a maioria está atacada de afecções que têm resistido aos meios curativos ordinários. Enumerei, desde 25 de fevereiro, 152 casos de doentes muito variados. Infelizmente, em nosso país, sobretudo os doentes indigentes, seguem seu capricho e não têm a paciência de se resignarem a um tratamento continuado e metódico; desde que experimentam melhora, se crêem curados e não fazem mais nada; é um fato que, freqüentemente, tenho constatado na minha clientela, e que necessariamente, deveria se representar com a senhorita Godu. Como vos disse, eu não quero nada prejulgar, nada afirmar, a menos de resultados constatados pela experiência; mais tarde farei o escrutínio das minhas observações, e constatarei as mais notáveis; mas, desde hoje, posso vos exprimir a minha admiração por certas curas obtidas fora dos nossos meios ordinários. “Vi curar, sem quinino, três febres intermitentes rebeldes, das quais uma resistira a todos os meios que eu empregara”. “A senhorita Godu curou, igualmente, três panarizes e duas inflamações subaponeuróticas da mão em muito poucos dias; com isso fiquei verdadeiramente surpreso”. “Pude constatar também a cura, ainda não radical, mas bem avançada de um dos nossos mais inteligentes lavradores, Pierre Lê Boudec, de Saint-Hervé, atacado de surdez há dezoito anos; ele ficou mais maravilhado que eu quando, depois de três dias de tratamento, pôde ouvir o canto dos pássaros e a voz de seus filhos. Vi-o esta manhã, tudo faz esperar uma cura radical dentro em pouco. “Entre nossos doentes, aquele que atrai mais a minha atenção, neste momento, é o de nome Bigot, trabalhador do campo em Saint-Caradec, atingido há dois anos e meio de um câncer no lábio inferior. Esse câncer chegou ao último período; o lábio inferior estava em parte comido, as gengivas, as glândulas sublinguais e submaxi-lares estão cancerosas; o osso maxilar inferior participa, ele mesmo, da doença. Quando se apresentou em minha casa, seu estado era desesperador; suas dores eram atrozes; não dormia há seis meses; toda operação era impraticável, o mal estando muito avançado; toda a cura me parecia impossível, eu o declarei muito francamente à senhorita Godu, a fim de premuni-la contra um fracasso inevitável. Minha opinião não mudou com respeito ao prognóstico; não podia crer na cura de um câncer tão avançado; entretanto, devo declarar que, desde o primeiro curativo, o doente sentiu alívio, e que desde esse dia, 25 de fevereiro, ele dorme bem e pode alimentar-se; a confiança voltou-lhe; a chaga mudou de aspecto de maneira visível, e se isso continua, serei, apesar de minha opinião tão formal, obrigado a esperar uma cura. Se ela realizar, isso será o maior fenômeno curativo que se possa constatar; é necessário esperar e ter paciência com o doente. A senhorita Godu tem-lhe u m cuidado todo particular; por vezes lhe tem feito curativos todas as meias horas; esse indigente é o seu favorito. “Por outro lado, nada a vos dizer”. Poderia vos edificar sobre os mexericos, sobre as bisbilhotices, as alusões à feitiçaria; mas como a insensatez é inerente à Humanidade, não me preocupo em nada com o cuidado de curá-la. “Aceitai, etc. MORHÉRY.” Nota. Como se pôde disso convencer, pelas duas cartas acima, o senhor Morhéry não se deixa deslumbrar pelo entusiasmo; ele observa as coisas friamente, como homem esclarecido que não se ilude; faz com uma inteira boa fé, pondo de lado o amor-próprio do doutor, não temendo a confessar que a natureza pode abster-se dele, inspirando a uma jovem, sem instrução, meios para curar que não encontrou nos ensinamentos da Faculdade, nem no seu próprio cérebro, e com isso não se crê de nenhum modo humilhado. Seus conhecimentos em Espiritismo mostram-lhe que a coisa é possível, sem que haja para isso derrogação das leis da Natureza; ele a compreende, desde que esta faculdade notável é, para ele, um simples fenômeno mais desenvolvido na senhorita Godu que em outros. Pode-se dizer que essa jovem é para a arte de curar o que Jeanne d’Arc o era para a arte militar. O senhor Morhéry, esclarecido sobre os dois pontos essenciais: o Espiritismo como fonte, e a medicina comum como controle, pondo de lado todo o amor-próprio e todo sentimento pessoal, está na melhor posição para fazer um julgamento imparcial, e felicitamos a senhorita Godu pela resolução que tomou de se colocar sob seu patrocínio. Nossos leitores nos serão agradecidos, sem dúvida, por tê-los ao corrente das observações que serão feitas ulteriormente.