Faces e mistérios de uma grande mãe
Quem é essa Maria? Como ela se tornou a mulher mais louvada da história?
Ela não cingiu a auréola de mártir. Não realizou nenhum milagre. Não deixou nenhuma relíquia de si. Mas foi qualificada como deusa, apesar de não cumprir com nenhum destes três elementos essenciais do culto primitivo aos santos. Ela não é a figura central do Cristianismo, mas no Ortodoxismo Cristão, dominante na parte oriental da Europa, ela é considerada como um símbolo da própria igreja. Sobre ela, existem vagas referências nos Evangelhos: Marcos cita-a apenas uma vez. João a chama de “mãe de Jesus”.
Maria é o maior paradoxo na historia do Cristianismo, pois, ao mesmo tempo em que é a mais obscura personagem no Novo Testamento, ela é, também, a mais eminente figura do culto cristão, depois do próprio Cristo: Os fiéis da igreja Copta, que vivem na Etiópia e no Egito, têm por ela fortíssima veneração. Os Luteranos possuem a Irmandade Evangélica de Maria. O próprio Martinho Lutero escreveu em seu comentário ao Magnificat que Maria é a mulher mais sublime da Terra, apesar da Virgem Maria ter sido uma das causas da ruptura da igreja Católica, que levou à criação do protestantismo. Até entre os muçulmanos Maria ocupa importante lugar no Corão, sendo a terceira pessoa mais mencionada no livro, atrás apenas de Moisés e Noé e bem à frente de seu filho, Jesus. Maria também aparece no Alcorão, que, num de seus versículos, a coloca entre as mulheres mais dignas do mundo, ao lado da mulher do profeta Maomé, Khadija, e de sua filha Fátima.
Mas quem é essa Maria? Como ela se tornou a mulher mais louvada da historia? Como cultuar uma figura que nem sempre parece convencida da natureza divina de seu filho e eclipsada no testemunho dos apóstolos?
INSPIRAÇÃO NA ARTE UNIVERSAL
Dois fatores intervieram para que Maria conquistasse a posição que desfruta já desde a Idade Média. Primeiro: a sobrevivência do paganismo nos cultos populares. Maria tende a substituir diversas deusas geradoras dos cosmos, como a egípcia Ísis, a Síria Astarté e demais divindades gregas ou romanas. Segundo houve um “artifício teológico”, um paralelo entre a Paixão de Cristo e a Compaixão da Virgem. Desde o século 5, Maria é alvo de grande devoção. Acredita-se que em 626 d.C., ela tenha salvado Constantinopla da invasão dos avaros. Os séculos 11 e12 foram culminantes no culto mariano. É quando surgem as grandes catedrais góticas em sua homenagem. Surgem os qualitativos como Rainha e Madona. No Renascimento, a imagem da melancolia profética de Maria, que tenta poupar ao filho a revelação de seu sacrifício, estampou obras de Michelangelo, como a Madona da Escada. Não apenas a mãe vive a sua compaixão, antecipando seu saber divino ao do próprio Cristo, como se coloca a serviço da proteção do Filho. Por extensão, do fiel, que tende a manter com Maria uma relação filial, fortalecida pela figura da Maria Avvocata, a Maria que advoga a causa de seus filhos perante o Criador, conforme proclamou São Bernardo de Claraval, abade francês do século 12. Na Idade Moderna, a piedade mariana dá peso a grandeza moral de Maria, estabelecendo um ideal de virtude. O novo papel de Maria não agrada nem mesmo alguns católicos, que se negavam a reconhecê-la numa posição mais elevada do que diziam as Escrituras. As informações ali contidas eram vagas e contraditórias.
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Alguns diziam que Maria nasceu em Nazaré, outros, em Jerusalém. Depois da crucificação de Jesus, não se sabe para onde Maria foi. Porém, esse quase “silêncio” dos Evangelhos Canônicos sobre a figura de Maria aumentava ainda mais sua lenda, fomentada pelos Evangelhos apócrifos: o Proto-Evangelho de Tiago, de onde surge uma verdadeira “biografia” de Maria – as historias de Joaquim e Ana, idosos, e sem filhos que recebem a visita de um anjo que diz a Ana sobre a filha que será conhecida no mundo todo. O nascimento imaculado de Maria, a educação refinada, a apresentação ao templo aos 3 anos, seu noivado com um velho marceneiro, viúvo com filhos adultos; de seu casamento casto (a virgindade de Maria, aliás, é um foco do Proto-Evangelho), de dar à luz a Jesus quando tinha 16 anos, de sua participação no sacrifício do Filho, sua liderança junto aos apóstolos, sua morte e sua assunção, seguido do coroamento celestial.
Em 1517, Martinho Lutero defendia a salvação pela fé, dispensando intermediários, como Maria. A partir do século 19, a dimensão da figura de Maria fica ainda maior, movida pela luta da igreja contra o racionalismo e a reação da figura feminina dentro da igreja, cuja instituição é fortemente masculina. Assim, a figura do Pai divino cede espaço para a Mãe, reforçando o papel social das mulheres na religião. Os apóstolos e os outros santos sofrem um esvaziamento como fenômeno da massa. As aparições de Maria se multiplicam. O Concílio Católico Vaticano II, de 1962 a 1965, enfatiza que Maria é um ser humano e que a veneração à Virgem e a outros santos não deveria diminuir a reverência a Deus. Mesmo assim, nos últimos 30 anos, o culto à mãe de Jesus só vem aumentando, inclusive em países sem tradição cristã, como Ruanda, Coréia e Japão. Até mesmo os protestantes já mostram mais interesse por ela, talvez reavaliando o que perderam ao abrir mão de Maria, a face feminina de Deus, tema de algumas das maiores obras artísticas da humanidade – na pintura, na literatura, na música. Um paradoxo por ser, ao mesmo tempo, a mais humilde das personagens e a mais poderosa entidade entre todas as mitologias.
REVISTA CORREIO FRATERNO * FILOSOFIA E RELIGIÃO – 13 – MAIO/JUNHO DE 2007
George de Marco